‘Revelado’ aos 23, ele foi de marinheiro recusado em sete peneiras a autor de gol de título pretendido por Ceni e Grêmio

Foi em 11 de março deste ano, poucos dias antes do início do período de quarentena, que o atacante Cléber teve uma das conversas mais decisivas de sua vida.

Jogador do pequeno Barbalha, ele foi chamado de canto pelo técnico do Fortaleza, Rogério Ceni, ao fim do jogo em que anotou para o seu time, na derrota por 4 a 2, pelo Cearense.

“Ele queria saber minha idade, quanto tempo de contrato eu tinha com o Barbalha, e perguntou: ‘Você quer ganhar dinheiro na bola mesmo?’. E eu respondi: ‘E o que mais eu quero?’, contou ao ESPN.com.br, com um musical sotaque baiano, o atacante de 24 anos.

Cléber comemora após marcar para o Ceará sobre o Bahia© Gazeta PressCléber comemora após marcar para o Ceará sobre o Bahia

“Eu nunca tinha falado com um personagem tão grande”, disse. “Na hora ali, tem que fingir que aquilo tudo é normal”, disse entre risos. Cléber sabia que vivia ali um ponto de virada e que estava começando a ser notado.

O negócio com o Fortaleza não saiu. Em vez disso, ele foi para o rival Ceará, que lhe fez uma proposta irrecusável, segundo conta.

“Aceitei a primeira. Para quem vinha de um clube inferior como eu, não tinha muito o que pensar”, contou ele, que vai com seu time para Recife enfrentar o Sport, neste domingo  (8), às 18h30.

Ex-Fluminense, Athletico-PR, Bahia e Atlético-MG, meia tem ótimas estatísticas somando Brasileirão e Copa do Brasil© Fornecido por ESPNEx-Fluminense, Athletico-PR, Bahia e Atlético-MG, meia tem ótimas estatísticas somando Brasileirão e Copa do Brasil

Centroavante do Ceará após ser sondado por Ceni, artilheiro do cearense por um clube pequeno e, pouco tempo depois, autor de gols nos dois jogos das finais da Copa do Nordeste. E que por pouco não foi para o Grêmio.

A chance de jogar para Renato Gaúcho esfriou, ao menos neste ano, porque ele chegou a sete jogos pelo Vozão.

Nada mau para alguém com três anos de carreira, criado em uma favela no bairro do Engenho Velho da Federação, em Salvador. Que foi recusado em sete peneiras entre Bahia Vitória, não fez categorias de base e ficou um ano servindo à Marinha do Brasil.

O Bahia, aliás, é sua maior vítima: em três jogos, anotou três vezes contra o clube da cidade onde nasceu.

Cléber é um raro caso de revelação de 23 anos, idade em que muitos garotos, se não vingaram, já nem tentam mais. Mas ele persistiu e hoje, por exemplo, tem intimidade para tirar sarro de um jogador do tamanho de Fernando Prass.

“Ah, a gente brinca. Na hora de ir pro campo, a gente manda aquele ‘bora treinar, velhinho!’”, conta, aos risos.

“Ele é um exemplo. É velho, só no número. Treina mais que todo mundo. Um cara sensacional”, diz.

Na conquista da Copa do Nordeste, Cléber foi um dos mais empolgados para jogar o técnico Guto Ferreira para cima, aos gritos de “Uh, Gordiola!”

A reportagem perguntou a Cléber se o gracejo havia sido ideia sua. Ele negou, mas o fez rindo muito. Suspeito.

“Foi coisa de todo o pessoal, a gente tinha combinado e até ensaiado entre a gente antes”, revelou.

“Tem que ter a resenha, pra coisa fluir”, ensina.

No Brasileiro, o atacante disputa posição com o multicampeão Rafael Sóbis, de quem ouve conselhos. “Ele corrige meu posicionamento, dá dicas.”

E terá agora a concorrência também de Felipe Vizeu, recém-contratado.

Cléber larga na frente. Na última rodada, no empate em 2 a 2 com o Botafogo, deixou sua marca. Já são quatro gols no Campeonato Brasileiro, que o fazem vice-artilheiro do time atrás de Vina, que vive ano iluminado.

Cléber é versátil.

“Posso jogar mais plantado, na área. Mas também sei sair e fazer função mais tática”, diz o grandalhão, bastante rápido para a sua altura.

A bola ajuda

Quando foi convocado pela Marinha, em 2015, Cléber já queria ser jogador de futebol. Aliás, ele nunca quis outra coisa. Mesmo muito alto, com 1,95 m, nunca cogitou basquete ou vôlei, por exemplo.

“Nem tinha muito isso em Salvador, não”, conta. Estudar também não era muito a sua. “Nada, eu não queria saber de nada”, diverte-se.

“Eu sempre fui muito sonhador. Jogava na várzea pensando em ser profissional mesmo”, conta ele, que sempre foi muito incentivado pelo pai Genivaldo e pela mãe Vânia.

“Meu pai sempre acreditou em mim.”

Nas peneiras, Cléber jogava fora de sua posição preferida, para poder ter mais visibilidade.

“Eu sempre quis ser atacante. Mas chegava nas peneiras, eu dizia que era volante. Primeiro porque todo mundo quer ser atacante. E depois porque volante pega muito mais na bola”, diz.

Mas ele não foi convocado pela dupla Ba-Vi. Quem o chamou foi mesmo o alistamento. Cléber nunca tinha entrado num navio. Tampouco tinha manuseado uma arma de fogo, que teve de aprender a montar, desmontar e limpar com destreza.

Mas mesmo no serviço militar, ele deu um jeito de jogar bola. Na real, foi a bola que o procurou. Nas peladas, ou “baba”, como se fala no Estado de Jorge Amado, ele chamou a atenção dos superiores.

“Os sargentos e oficiais me chamavam para os jogos de fim de semana e assim, eu escapava dos serviços”, revela o jogador, dando risada.

“Cheguei a jogar pela seleção da Marinha. O pessoal viu que eu tinha o jeito e me botava para jogar junto com eles”, conta.

“Joguei no campeonato distrital, que reunia Exército, Aeronáutica, Fuzileiros Navais. Chegamos a ser vice-campeões na época”.

“Eu até que gostei do serviço militar. Aprendi disciplina, hierarquia. Passou pela cabeça seguir carreira. Mas meu negócio era futebol mesmo”, diz.

Aventura na Alemanha e início Tardio

A primeira equipe profissional de Cléber foi o Icasa, em 2017, na Série B cearense.

Ficou pouco tempo, dois meses. mas disputou a Copa Fares Lopes, uma espécie de “Copa do Ceará” que classifica seu vencedor para a Copa do Brasil.

Foi até as quartas e recebeu uma proposta do Barbalha, da Série C. Mesmo descendo uma divisão, valia a pena. E o clube conseguiu o acesso, com Cléber se destacando e ganhando um contrato mais longo.

Mais ou menos na mesma época, ele acreditou em um empresário que organizou uma peneira em Salvador. O objetivo era selecionar jovens para jogar em um time na Alemanha.

“Tinha que pagar uma parte da passagem, mas a gente deu um jeito. Eles pagaram a outra parte mesmo”, conta.

Mas não foi dessa vez que ele realizou o sonho de atuar na Europa. Já na conexão na Itália, ele e um colega foram impedidos de seguir viagem.

“A gente conseguia entender que faltava um documento, mas nem sabia qual era, se era visto, se era outra coisa. E fomos deportados”, revela.

“Daí voltamos e falamos com os caras, que queriam mandar a gente para lá de novo. Só que aí a gente perdeu a confiança”, conta.

Mais tarde, ele descobriria que o tal time para o qual ele quase foi não disputava campeonatos. E que ele ia ficar lá só treinando, esperando uma proposta.

Em 2018, ele já estava no Guarany de Juazeiro, na primeira divisão. Mas como não jogava, retornou ao Barbalha e conquistou mais um acesso, de novo para a primeira divisão, arrebentando e sendo artilheiro

Parecia que tinha chegado a hora de Cléber, que foi para o Vitória de seu Estado natal. Mas foi alarme falso.

“Cheguei para o sub-23, joguei no aspirante e, em 2019, fui promovido para o profissional quando Carpegiani era o técnico”, conta. Foi inscrito no Baiano, na Copa do Nordeste e na Copa do Brasil. “Mas não fiz gols pelo profissional, não tive espaço”, conta.

Aí, começou a peregrinação com uma sequência bem aleatória: Caucaia, com acesso para a Série A cearense. Concórdia, com acesso para a Série A de Santa Catarina.

Depois, Guarany de Sobral e retorno ao Barbalha, para a disputa do Cearense de 2020 e o encontro com Ceni – que foi onde essa história começou.

Talismã do Guto

Quando chegou ao Ceará, contratado, se deslumbrou com a estrutura. Apresentou-se ao então técnico Enderson Moreira, que logo sairia para o Cruzeiro.

“Minha estreia foi com o Guto, já, na Copa do Nordeste, contra o CRB”, conta. E o técnico decidiu apostar em Cléber, que deu retorno.

“Bateu aquele nervosismo, estrear com uma camisa pesada de muita torcida, apesar do estádio vazio. Mas depois que a bola rolou, veio a tranquilidade de todo baiano”, conta.

Na sequência, Vitória, com triunfo do Ceará. E um novo encontro com Ceni, na semifinal. Quer dizer, “encontro” é exagero.

“Não deu nem tempo de falar com o Rogério naquele clima de clássico histórico, pela primeira vez fora de Fortaleza”, diz. Deu Vozão: 1 a 0. E pela frente vinha o Bahia, favoritaço.

“Todo mundo achava que a final ia ser Fortaleza e Bahia”, diz ele. Mas não foi.

Quem fez a final no lugar do arquirrival foi o Ceará, e com uma vitória maiúscula, começou a ganhar o título: “3 a 1, com gol do Clebão!”, relembra-se o atacante – seu primeiro no clube.

“A ficha demorou a cair: eu tava fazendo um gol em Salvador, onde nasci, em uma final”, diz. “Não da nem pra explicar”.

E na segunda partida da final, Cléber fez nada menos que o gol do título, no 1 a 0 da consagração.

“Em menos de um ano, tudo mudou. Clebão: da Marinha para os gramados”, diz ele entre risos, como se escrevesse o título da própria história.

 

 

ESPN

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