Campos de concentração no Brasil mantiveram ‘súditos do Eixo’ durante 2ª Guerra Mundial
Além das batalhas no exterior, o Brasil lutou no front interno na Segunda Guerra Mundial. Quem eram os “súditos do Eixo”, mantidos presos em campos de concentração no Brasil durante o conflito?
Quando falamos sobre campos de concentração, lembramos rapidamente de campos de extermínios nazistas, como Auschwitz. Mas poucos poderiam imaginar que houve campos de concentração em terras tupiniquins, para abrigar alemães, japoneses e italianos durante a Segunda Guerra Mundial.
Desde o começo de sua carreira de pesquisadora, a historiadora Priscilla Perazzo mergulhou na documentação das Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS), para encontrar os registros da atuação de nazistas alemães no Brasil, no período da Segunda Guerra Mundial.
“Nos documentos, encontramos redes de espionagem nazistas organizadíssimas que atuavam no Brasil”, contou Perazzo à Sputnik Brasil. “Eram duas grandes redes, organizadas pela própria embaixada alemã, principalmente a partir de 1940.”
As redes de espionagem contavam com apoio das células do partido nazista alemão no Brasil, que recrutavam membros da comunidade de imigrantes para suas fileiras.
“O chefe do partido nazista para o Brasil, Hans Henning von Cossel, chega ao país em 34, e começa a organizar as células do partido, compostas exclusivamente por membros da comunidade alemã”, explicou Perazzo.
“Eles não vinham ao Brasil para converter brasileiros ao nazismo, mas atuavam exclusivamente nas colônias e conduziam todas as suas atividades em alemão”, notou a historiadora.
Alguns membros do partido nazista atuavam nas redes de espionagem, que tinham o objetivo de coletar informações que pudessem ser úteis para o esforço de guerra alemão.
“A rede de espionagem nazista no Brasil tinha uma cúpula, com pessoas infiltradas em empresas e no alto escalão de bancos. Esses espiões assinavam a ficha do partido nazista”, detalhou Perazzo.
No entanto, havia grande número de informantes que “não estavam a par dos mecanismos da rede” e passavam informações simples, como o número de navios que avistavam na costa brasileira.
“De 1938 a 1942, a polícia brasileira sabia quem eram e onde estavam todos os membros da rede de espionagem, mas só observava”, ressaltou Perazzo.
A reviravolta foi quando o “Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo, em janeiro de 1942”, explicou Perazzo.
“No primeiro semestre de 1942, DOPS desbaratou toda a rede e prendeu todos os seus membros em delegacias. No segundo semestre, esses prisioneiros foram encaminhados para campos de concentração.”
Campos de Concentração no Brasil
Após a Segunda Guerra Mundial, a ideia de campos de concentração ficou marcada por experiências como as dos campos de extermínios montados pela Alemanha nazista. Mas antes disso, infelizmente, o estabelecimento de campos de concentração era prática comum no mundo pré-Segunda Guerra Mundial.
“A ideia de campo de concentração existia desde 1899, inaugurada na África do Sul. Eram prisões para onde eram levados os indesejados, que deveriam ser excluídas do convívio social, mas não necessariamente exterminados”, disse Perazzo.
“Os EUA montaram campos de concentração, nos quais japoneses foram mantidos durante toda a Segunda Guerra Mundial”, lembrou a historiadora.
Quando Hitler começa a instituir seus campos, “ninguém o questionava, porque era uma prática legitimada”.
No entanto, sem nenhum controle de organizações internacionais, como a Cruz Vermelha, Hitler começa a “transformar campos de concentração em campos de extermínio”.
O Brasil adotou o modelo norte-americano e instituiu, a partir do segundo semestre de 1942, “11 campos de concentração, espalhados pelo país, desde o Pará até o Rio Grande do Sul”.
“Foi uma discussão enorme dentro do governo brasileiro para definir como montar os campos e quem enviar para lá. Como tínhamos nos alinhado aos EUA, era preciso dar demonstrações de engajamento contra o Eixo”, explanou Perazzo.
O maior número de prisioneiros nos campos de concentração brasileiros correspondia a “alemães, seguidos pelos japoneses e, em terceiro lugar, os italianos, que foram muito poucos”, notou.
“Os alemães, que haviam assinado a ficha do partido nazista, foram todos levados para os campos. Alguns espiões que eram ricos o suficiente, ou que tinham cacife político, foram repatriados. Os demais ficaram presos nos campos”, disse Perazzo.
Uma exceção foi “Gustav Engels, que era o chefe de uma das redes de espionagem, representante de uma empresa de eletricidade, e fica preso no Brasil”, notou Perazzo.
No entanto, muitos membros das redes que “cumpriam funções mais brandas, que eram apenas informantes, foram absolvidos pelo Tribunal de Segurança Nacional”, ponderou a historiadora.
Prisioneiros militares
Após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o governo passou a “tipificar o crime de espionagem como um crime de guerra”.
Por isso, a maioria dos presos dos campos de concentração brasileiros era civis, condenados por um crime de guerra.
Uma exceção é o “Campo de Prisioneiros de Guerra de Pouso Alegre, em Minas Gerais, que foi o único […] a receber militares alemães capturados durante o conflito”.
Nesse campo, ficaram presos, “de 12 de setembro de 1943 a 15 de abril de 1944, 62 marinheiros do navio alemão Anneliese Essberger”.
O Anneliese Essberger “era um cargueiro da marinha mercante, mas que tinha a função de furar bloqueios, para abastecer submarinos alemães no Atlântico com combustível, mantimentos, munições e matérias-primas”, contou Perazzo.
“Em 1942, o cargueiro foi interceptado pela quarta esquadra norte-americana, então sediada no Recife (PE)”, contou Perazzo.
Mas antes que os americanos pudessem tomar a embarcação, “a própria tripulação a destruiu”. Os marinheiros foram capturados no mar pela Marinha brasileira e eventualmente levados para o campo de Pouso Alegre.
No campo, o Brasil “adotou os protocolos da Convenção de Genebra de 1929”, que permitiam que os presos usassem “insígnias de hierarquia militar e condecorações”, permanecendo “em relativa liberdade” dentro do alojamento do campo.
“A correspondência estava sujeita à censura”, assim como os livros ou “encomendas postais” que quisessem receber.
Além disso, “durante os sete meses de funcionamento do campo”, os prisioneiros receberam visitas de “diplomatas do Itamaraty […] e da Cruz Vermelha Internacional”, disse Perazzo.
Campo de concentração de Tomé-Açu
O Campo de Tomé-Açu, no Pará, se diferencia dos demais por ser um campo voltado sobretudo para controle da comunidade japonesa.
Na vila isolada de Tomé-Açu havia um grupo de imigrantes japoneses que “vieram como uma colonização organizada por empresas do Japão”, disse Perazzo.
Começada a guerra, o governo brasileiro opta por controlar o acesso ao rio que levava ao vilarejo, mantendo todos os seus habitantes presos em Tomé-Açu.
“O governo recolheu outros japoneses que estavam na Vila Amazônia e levaram para lá, assim como um grupo de alemães fichados no partido nazista. E ali se deu todo o controle da colônia japonesa”, até agosto de 1945.
Para a historiadora, o governo brasileiro adotou uma estratégia diferente com os “súditos do Eixo” japoneses, preferindo mantê-los “confinados em suas próprias cidades”.
Após o início das hostilidades, o governo “recolheu 43 japoneses da região de Santos, e os enviaram para Bastos (SP)”, por exemplo. “De lá, eles não poderiam sair, a não ser com salvo-conduto.”
“Os pedidos de salvo-conduto, que passavam por DOPS, eram sistematicamente negados”, conta Perazzo.
Libertação de prisioneiros?
Os “súditos do Eixo” ficaram presos em campos de concentração brasileiros até agosto de 1945, isto é, seis meses depois da capitulação da Alemanha e um mês antes da capitulação do Japão.
“Depois da libertação, muitos deles ficaram desempregados, por serem taxados de nazistas – até porque muitos eram nazistas mesmo, então não eram ilesos, mas foram estigmatizados, deixando um trauma em suas famílias”, disse Perazzo.
“Os prisioneiros se calaram e contaram muito pouco sobre suas experiências no campo. Os filhos deles, por sua vez, passaram por dificuldades, em função do desemprego dos pais”, contou.
Uma das principais consequências da política de repressão aos imigrantes do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial foi o fim da coesão das comunidades desses imigrantes e interrupção do aprendizado dos idiomas japonês e alemão pelos seus descendentes.
“As gerações após a guerra já não aprendem mais a língua alemã, que antes era usada dentro das casas. A política foi efetiva em quebrar a coesão das colônias”, avaliou Perazzo.
O trauma foi tão grande, que “os relatos sobre esses prisioneiros só estão vindo à tona só com a terceira geração, que percebeu que havia alguma coisa errada com a história de seus ancentrais e resolveu ir vasculhar”.
No dia 24 de junho, a Rússia, aliada do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, irá celebrar os 75 anos do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial, em data excepcional, em função da pandemia do novo coronavírus. Até lá, a Sputnik Brasil prepara uma série de reportagens para relembrarmos os momentos mais marcantes do conflito mais trágico do século XX.
(Matéria publicada no Sputik)