Benilda Kadiwéu ganha maior prêmio de literatura com poema sonhado

Benilda integra coletivo de mulheres que venceu categoria do Prêmio Jabuti. (Foto: Arquivo pessoal)


Quando precisou deixar a aldeia Alves de Barros, em Porto Murtinho, Examelexê, a Benilda Kadiwéu, não imaginava que receberia a maior premiação de literatura do Brasil ao lado de outras 62 mulheres indígenas anos depois. Destaque nacional, a artista, designer e professora indígena de Mato Grosso do Sul garantiu o prêmio como coautora da obra literária “Álbum Guerreiras da Ancestralidade”, organizada por Eva Potiguara.

“Fui apresentada para Eva pela Auritha Tabajara, indígena cearense, escritora e cordelista. A Eva pediu para olhar meus poemas, escolheu dois e me disse que eu estava apta para participar do grupo. Revisei os poemas e enviei, deu esse resultado lindo do coletivo”, introduz Bení sobre como se conectou ao grupo organizado por Eva.

Mais do que vencer o prêmio sozinha, ela reforça que ter conquistado essa vitória em um coletivo com outras mulheres é o grande destaque. “Ganhar o Prêmio Jabuti em coletivo é uma alegria imensa, esse prêmio tão desejado é o mais tradicional prêmio literário do Brasil, concedido com o interesse de premiar autores, editores e ilustradores”.

Em relação aos poemas escolhidos por ela para integrar o álbum, Benilda detalha que a primeira opção veio em sonho, “acordei já com a caneta na mão para transcrever. E a maioria dos poemas escreve sobre a minha vivência e a história do meu povo Ejiwajegi, símbolo de defesa e luta”.

Definido como um álbum biográfico, o livro do coletivo Mulherio das Letras Indígenas reúne escritoras e poetas indígenas de várias regiões do país. “Este trabalho sintetiza o entrelaçamento de trajetórias das poetas indígenas ao tecer não apenas as trajetórias individuais, mas também as narrativas históricas, raízes, ancestralidades, desafios, conflitos e vitórias que moldam a vida pessoal e coletiva nos territórios indígenas e nas cidades”, apresenta a assessoria de comunicação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

A oportunidade foi muito grande e eu honrei o convite, pois escrevo poemas desde o ensino fundamental. Não iremos parar por aqui. A relação do indígena com natureza, arte e espiritualidade é muito forte e isso me traz muitas inspirações, explica a escritora.

Especificamente sobre a categoria em que o livro concorreu, o destaque é para obras que despertem o interesse e hábito da leitura, tendo cunho de caráter social, educativo, cultural ou tecnológico, sendo inclusivas e abrangentes.

Em sua participação no livro, Benilda resgata memórias construídas na aldeia Alves de Barros, localizada em Porto Murtinho. Lá, ela narra sobre seu nome de batismo, as práticas tradicionais que a constituíram e a transição forçada para a cidade.

“Quando ainda era criança, recebi uma homenagem dos meus avós paternos, batizada com o nome Examelexê, que na tradução: ‘é uma cantoria que relembra a história de luta pela sobrevivência das famílias ejiwajegi, na proteção das terras, em corpo e espírito’”, introduz a artista.

Enquanto permaneceu na aldeia, Benilda garante que vivenciou vários modos de se conectar à arte e cultura kadiwéu. “Com a confecção das miniaturas em cerâmica, feitas a partir de barro e argila, com pigmentos naturais e algumas seivas retiradas na natureza na fabricação da resina a partir do Palo Santo”.

A retirada do mel de abelhas, busca por jenipapo e colheita de urucum para que os mais velhos pudessem praticar as pinturas também integram as experiências relatadas no livro. E, quando chegou o momento de se mudar para a cidade e continuar os estudos no ensino fundamental, Benilda explica que o contato com a arte se fortaleceu enquanto sua língua indígena precisava ficar em segundo plano.

“Foi um desafio muito grande voltar a escrever na língua kadiwéu, comecei a traduzir poemas, me inspirar e fazer poesias na língua indígena kadiwéu. A arte e a poesia foram importantes para o fortalecimento da minha identidade, ampliaram a visão de mundo das pessoas e o respeito ao meu redor, foi um espaço de expressão e participação dos outros”.

Desde então, Benilda recebeu o título para dar aulas em escolas indígenas e se formou como designer pela UCDB (Universidade Católica Dom Bosco) em 2009. Hoje, reforça que usa o etnodesign para compartilhar aspectos da cultura kadiwéu.

“Provocar a reflexão sobre o universo simbólico da arte kadiwéu é respeitar seus significados, elemento relevante da cultura do meu povo guerreiro”, completa em sua biografia no livro.

Para integrar o álbum biográfico, a artista submeteu os poemas “Godamipi” (Nossos Ancestrais” e “Apolicagademigipi” (Cavaleiros) e a frase “Godicogegi Ane Niigotedi Godampi” (Somos feitos da terra de nossos ancestrais).

Confira os textos abaixo em suas versões em língua materna e traduzido ao português:

Godamipi

Nigina Godamipi jigina godawonadiI, oyotete codaa owoo godicogegi me yewiga, ewo

me dale godogetedi.

Nigina ane ejinaga me godewiga, eniododipi oniigaxitiniwake liyonigipi,

nigina dinotakepodi oneyagaitema litakepodi.

Nigina iigo gonebi, codaa oko liyonigipi.

Ica jotigide godakataga,

Codaa inoa nokododi ane ejonagatigi.

Niginoa godakataga leeditibige me dinelogodi,

Leeditibige me igo odoe .

Nigina witidaga, inoa ane jakataga,Godalokico codaa ina me godaagatigi,

Me diniditedi, codaa niginoa nogowekico.

Nossos Ancestrais

Os nossos ancestrais são os nossos esteios, dão vida para a nossa origem, fazem com

que nossos sonhos respirem.

O nosso modo de viver, os pais ensinam aos seus filhos, os parentes deixam legado

para seus parentes.

Essa terra é nossa, e somos filhos dela.

A nossa cultura, no passado e atualmente, o nosso modo de viver, precisam ser

contados e passados.

Os guerreiros, tudo que temos, nossas festividades tradicionais, nossas lembranças…

precisam ser escritas em versos, até mesmo nossas cantorias.

Apolicagademigipi

Anigida noko nige jikanaga me yotaganagatigi gonioladi, anigida noko nige jikanaga me

yaogate niginoa godidico ina gonadinagajetedi, anigida noko nigina iwalepodi ejiwajegi

nige oika me oyowe niginoa liwilaganaga,anigida noko niginoa gonelegiwadi daga

oika me oilidagadi apolicaganagadi, nigina ejiwaji ene ejiwajegi leeditibigi me iniwatale

lidagataka napolicaganagatedi, anigida noko nige dagalegicoa nigidio iniwatagini

godakataga, odaa já joogotaga agakegica ejiwajegi jama.

Cavaleiros

No dia em que pararmos de falar a nossa língua materna; no dia em que não

praticarmos mais a pintura corporal e as nossas pinturas; no dia em que as mulheres

deixarem de praticar a confecção da cerâmica Kadiwéu; no dia em que os homens

pararem de praticar a criação dos cavalos – um Kadiwéu para continuar sendo Kadiwéu

– precisa ter pelo menos dois cavalos de estimação; no dia em que esses elementos da

nossa cultura específica do nosso povo acabarem, poderá ser declarado que o povo cavaleiro foi extinto. – CREDITO: CAMPO GRANDE NEWS

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