Sob fogo cruzado: qual o futuro da Lava Jato em uma arena cercada de inimigos?

A decisão do procurador-geral Augusto Aras de prorrogar a Operação Lava Jato pode ser só um pequeno intervalo na sequência de revezes sofridos pela força-tarefa mais polêmica da política brasileira recente.

Nesta quarta-feira (9), a Procuradoria-Geral da República (PGR) colocou fim a especulações e anunciou a prorrogação dos trabalhos da força-tarefa da operação Lava Jato até janeiro de 2021.

A decisão sugere, no entanto, uma série de mudanças no modelo de trabalho da equipe sediada em Curitiba. De acordo com a PGR, as mudanças seriam motivadas pelo teto de gastos, que impede o aumento de investimentos públicos acima da inflação.

Mas parece muito claro que a Lava Jato está sob fogo cruzado.

Se, por um lado, parte da esquerda condena a operação pela condução polêmica de acusações contra o ex-presidente Lula, partidos de direita também se incomodam com a alegada ingerência indevida do Judiciário na vida política do país.

O próprio procurador-geral Augusto Aras não poupa críticas públicas à operação, que teria caráter “personalista” e por não respeitaria as regras do Ministério Público.

“O papel de Aras é relevante” no enfraquecimento da operação, “afinal ele ocupa o cargo máximo do Ministério Público [MP]”, disse Adriana Ancona de Faria, doutora em Direito Constitucional e professora da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), à Sputnik Brasil.

“A aproximação ente Aras e o presidente [Jair Bolsonaro] não é segredo para ninguém”, acrescentou Luciana Gross Cunha, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“Aras foi encontrando espaço para mudar o contorno da Lava Jato” no sentido de “centralizar a operação e [demandar o] compartilhamento de suas informações”, disse Cunha à Sputnik Brasil.

Além da chancela presidencial, Aras conta também com “apoio dentro do próprio MP”, afinal muitos procuradores “se incomodam com a excessiva exposição” da Lava Jato.

“Nem sempre a visibilidade é uma coisa boa para essas instituições […] uma vez na mídia, eles serão criticados, vão sofrer pressão e se politizar”, explicou Cunha. “Essa politização não é vista de forma uniforme dentro do MP.”

No entanto, Faria nota que nem “todas as motivações de Aras respondem aos anseios da ordem constitucional democrática”.

De fato, Aras “é um dos que está na corrida” por uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF), o que o motivaria a “agradar o presidente”, lembrou Cunha.

“Aras quer poder demais […] ao demandar livre acesso a todos os atos do MP. Ele quer uma relação funcional de subordinação”, disse Faria.

Ela acredita que a decisão de prorrogar a Lava Jato foi equivocada, uma vez que a força-tarefa está com a legitimidade comprometida.

“A operação Lava Jato foi marcada pela atuação de procuradores federais articulados com um juiz, […] atuaram sem nenhuma imparcialidade e isenção necessárias a um processo de investigação honesto”, disse Faria.

Cercada de inimigos

Segundo Faria, “a sociedade brasileira vem percebendo que as denúncias sobre a ocorrência de lawfare, que é o mau uso das leis e dos procedimentos jurídicos para fins de perseguição política e de dominação jurídica,” parecem se confirmar.

Para alguns grupos políticos identificados com a esquerda, como os defensores do presidente Lula, “a operação já nasce com o objetivo delimitado de fazer uso do Direito para perseguir uma determinada força política”, disse Faria.

Por outro lado, a centralização da Lava Jato também interessa à direita, que “está procurando uma maneira de garantir a governabilidade” do país, acredita Cunha.

“A direita não quer a anulação de todos os processos da Lava Jato […] e muito menos a anulação da condenação ilegal de Lula: ela só quer que a Lava Jato seja desmontada daqui para frente”, considerou Faria.

Portanto, “temos um contexto político que faz com que os interesses” da esquerda e da direita “estejam juntos nesse momento. Mas não sabemos quanto tempo isso vai durar”, disse Cunha.

Fim da aliança com STF?

Uma das instituições que garantiu o protagonismo da força-tarefa na política brasileira nos últimos cinco anos foi Supremo Tribunal Federal (STF).

No entanto, o relativo apoio do STF à Lava Jato ficou abalado durante o mandato de presidente do Tribunal do ministro Dias Toffoli, entre 2018 e 2020.

“O Toffoli deu espaço para Aras, para que fosse bem-vindo o processo de centralização da Lava Jato”, disse Cunha.

Para Faria, o STF precisa rever a “aliança equivocada que manteve com a Lava Jato” e “atuar do ponto de vista reparatório, anulando atos ilegais cometidos”.

De acordo com Cunha, é urgente que o STF discuta algumas práticas adotadas pela Lava Jato “que talvez não caibam no nosso sistema jurídico”.

“Precisamos lembrar que tanto o acordo de leniência quanto a delação premiada não estavam previstos em lei, mas foram criados dentro dos processos de combate à corrupção […] quase que como uma imitação do modelo norte-americano”, disse Cunha.

Outra polêmica que o STF deverá debater é o “questionamento acerca da prisão em segunda instância, que ainda não está totalmente pacificada”.

Calcanhar de Aquiles

Para Cunha, a força-tarefa cometeu alguns “erros estratégicos”, como “acreditar que dependia da opinião pública”.

“Nos diálogos publicados pelo The Intercept Brasil, Dallagnol e Moro defendem ser necessário aproveitar o movimento das ruas e a visão favorável da imprensa à Lava Jato para dar continuidade aos processos”, disse Cunha.

“Mas precisamos lembrar que procuradores e juízes não dependem da aprovação popular. Eles têm outras fontes de legitimidade: as regras, o devido processo legal e o Estado de direito”, argumentou.

Faria concorda, e lamenta que “nossos operadores do direito eles estão cada vez mais respondendo à opinião pública, ao invés de responder às regras”.

A politização de membros do Judiciário “não é culpa só da Lava Jato”, concedeu Cunha. “A Lava Jato teve um legado importante e […] mostrou as falhas no nosso sistema de justiça em relação a crimes de corrupção.”

Para Faria, o legado da força-tarefa será o do “aparelhamento do Estado, de retrocesso democrático e de estado de exceção”.

“A Lava Jato passou o recado de que direitos fundamentais, como direito de defesa e devido processo, são obstáculos e não avanços civilizatórios contra o abuso do poder”, disse Faria.

Para ela, o eventual esvaziamento da operação não é por si só uma ameaça ao combate à corrupção.

“Foi construída uma falsa dicotomia que ou você é a favor da Lava Jato, ou você é a favor da corrupção”, disse a jurista.

Para ela, “o combate à corrupção no Brasil” não depende da força-tarefa, mas sim “do futuro da democracia brasileira”.

 

Nesta quarta-feira (9), a Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou a prorrogação dos trabalhos da força-tarefa da operação Lava Jato até janeiro de 2021. A decisão, assinada pelo subprocurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, sugere modificações na estrutura de trabalho da força-tarefa sediada em Curitiba.

Fonte: Conteúdo ms

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