O fogo no Pantanal e a instrumentalização da ignorância
Todo inverno é a mesma coisa. Há milênios – e muito antes de haver seres humanos por essas bandas. Uma imensa planície alagável, quase no centro geográfico da América do Sul, depois de meses de estiagem, pega fogo. No verão, depois de chuvas dignas de um dilúvio, ela inunda. E depois pega fogo. E inunda. E não adiantará nada tirar de lá todas as pessoas, fazer uma cerca bem alta e talvez até colocar uns barcos militares do Greenpeace para patrulhar os rios próximos. O ciclo vai se repetir, independente da minha vontade, da sua ou da Greta Thunberg.
Ah, mas neste ano os incêndios estão acima do normal. Prova incontestável de que o homem pantaneiro é um piromaníaco incorrigível. Ou que o governo fascista faz vistas grossas a garimpeiros, grileiros e pecuaristas viciados no cheiro do Pantanal queimando ao amanhecer. Não passa pela cabeça desses arautos da catástrofe ambiental que este foi um ano atipicamente seco na região. E que a ação humana é apenas um elemento a mais neste ciclo natural de destruição e renascimento.
Flora e fauna estão adaptadas. Sim, dá peninha ver fotos de animais tostados ou mortos por inalarem fumaça. Agora mesmo, ao fazer uma pausa durante a escrita deste texto, acabo de ver a triste imagem de uma linda onça-pintada que precisou ter as patas enfaixadas. Mas convém, novamente, ter um pouco de perspectiva darwiniana. O Pantanal e as onças que o habitam enfrentam o fogo e a água todos os anos há séculos e séculos. Umas morrem; outras tantas sobrevivem.
Entendo que hoje em dia seja uma tentação quase irresistível pôr a culpa no homem branco do mal. No chucro semicivilizado que invadiu a natureza pristina e tirou o sossego de tuiuiús, jacarés e sucuris. Tudo para criar bois que depois serão “assassinados” para alimentar os malvadões consumidores de carne. Tudo pelo vil metal. Ah, antes é que era bom!, pensa o xiita ecológico com seu reacionarismo socialmente aceito.
Uma pena que os fatos insistam em refutar tanto bom-mocismo. Porque antes da chegada do malvado homem branco os índios, ou melhor, os nativos, ou melhor, os brasileiros-natos já botavam fogo nas roças para limpar o terreno (coivara). Mas imagine o nó que dará na cabeça do ambientalista quando ele descobrir que a agropecuária moderna, aquela mesma que usa agrotóxicos e que maneja cientificamente a terra e os animais, é a que mais protege ecossistemas sensíveis.
É muito fácil cair no sentimentalismo ecológico, embora ele não condiga com a lógica mais elementar do próprio capitalismo agrário. Para um pecuarista do Pantanal, este mesmo que agora está sendo acusado de pôr fogo no mato porque talvez sofra de “piromania patriarcal” ou coisa assim, as queimadas representam prejuízo em imagem e em insumos. Sem pasto (porque o fogo não consome apenas a plantinha nativa), o gado é obrigado a ficar confinado, comendo ração. E com o comprador estrangeiro todo revoltadinho, não há como ele vender sua produção.
Lógica, porém, não rende likes, emojis lacrimejantes ou embargos de países importadores de carne (que agora está na moda chamar de proteína). Tampouco serve de sustento à narrativa primitivista segundo a qual a tecnologia está a serviço da destruição do meio ambiente e só o conhecimento dos povos nativos será capaz de nos salvar. Aliás, vai um golinho de cauim?
Os psolistas Marcelo Freixo e Sâmia Bonfim já correram para acusar o governo de Jair Bolsonaro de botar fogo no Pantanal. Talvez o próprio presidente tenha ido lá e jogado uma bituca de cigarro acesa no mato seco. Só para ver o bioma pegar fogo. Fico me perguntando o que eles proporão quando, daqui a alguns meses, o verde retornar às áreas naturalmente queimadas e quando os rios e lagoas transbordarem e os bichinhos deixarem de morrer queimados para morrerem afogados. Será que as inundações também são causadas por um homem branco cis hétero desalmado que esqueceu a torneira aberta?
Até entendo que os populistas de esquerda façam uso dessa narrativa sem qualquer conexão com a realidade, sem qualquer base na ciência que eles só obedecem quando convém. Afinal de contas, rende votos, sobretudo do jovenzinho urbano que acha que leite brota de árvore, que o ovo surge de uma máquina que mistura gema e clara numa embalagem frágil de cálcio, e que a carne simplesmente surge na prateleira do supermercado. E note que citei itens que uma pessoa plenamente consciente e em sintonia com Gaia jamais consumiria.
O que não entendo é ver essa historinha para boi (do Pantanal) dormir replicada por pessoas esclarecidas, que sabem que basta abrir o computador e fazer uma pesquisa rápida para descobrir que o Pantanal pega fogo e inunda desde que o mundo é mundo. Ou melhor, entendo. Afinal, o barulhinho dos aplausos é muito sedutor.
[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]
Autor – Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor.
Fonte – Gazeta do Povo