Julgamento da chapa presidencial marca despedida de corregedor do TSE
BRASÍLIA – Nesta terça-feira, 26, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) inicia o julgamento de ações contra a chapa do presidente Jair Bolsonaroe do vice Hamilton Mourão por suposto uso de notícias falsas e robôs nas redes sociais durante a disputa de 2018. É o último ato do embate contra as fake news travado na Corte pelo ministro Luis Felipe Salomão, que deixa o cargo na sexta-feira, com o término do rodízio de dois anos como juiz titular.
À frente da corregedoria-geral da Justiça Eleitoral, ele fez uma cruzada nos últimos 12 meses que atraiu ataques diuturnos de Bolsonaro e sua militância radical. No julgamento previsto para começar amanhã, ele vai relatar as duas Ações Investigativas da Justiça Eleitoral (AIJE) mais contundentes contra a chapa vencedora das últimas eleições presidenciais. A tendência é que os processos sejam arquivados, mas a tramitação deixa marcas de desgaste para o governo.
Salomão entregará os autos do inquérito administrativo contra Bolsonaro ao ministro Mauro Campbell, que assumirá o cargo de corregedor-geral e passará a relatar a investigação. Os magistrados possuem uma boa relação nos tribunais. Interlocutores dos ministros afirmam que a linha adotada pelo atual corregedor deverá ser seguida sem resistência pelo sucessor, num possível desdobramento dos processos. Fontes no tribunal afirmam que o material do inquérito das fake news– compartilhado pelo STF para municiar a ação de cassação da chapa presidencial – poderá ser usado na investigação administrativa, permitindo assim sua conversão em uma ação judicial.
Ao assumir o cargo de corregedor-geral, em setembro de 2020, Salomão declarou ao Estadão o interesse em julgar “o quanto antes” as ações que investigam ilícitos eleitorais da chapa Bolsonaro/Mourão, como forma de oferecer respostas à sociedade. O caso teve início em 2019 com a apresentação de denúncias pela chapa “O Povo Feliz de Novo” – composta por PT, PCdoB e Pros -, que acusa os vencedores da eleição presidencial de terem interferido no resultado do pleito a partir de disparos em massa de notícias falsas por empresas privadas e terem feito uso de documentos de pessoas idosas para cadastrar as contas utilizadas na operação.
Passados dois anos, as apurações foram finalizadas por Salomão na sexta-feira, 15. “Meu propósito era fazer as AIJES chegarem ao fim. E nós conseguimos”, afirma Salomão. “Eu espero e presumo que cada parte e a sociedade também compreendam a natureza da minha função, de um tribunal e de um colegiado.”
Trajetória
Nascido em Salvador e criado no Rio, o ministro de 58 anos, sendo 34 na magistratura, participou de julgamentos de repercussão. Em 2015, foi relator da ação no STJ que reafirmou o reconhecimento legal de uniões estáveis homoafetivas e permitiu aos parceiros com dificuldades financeiras a possibilidade de pedir na Justiça o pagamento de pensão alimentícia após o término do relacionamento.
Onze anos antes, ainda como juiz da 4ª Vara Empresarial do Rio, Salomão expediu a ordem de pagamento de indenização às famílias vítimas do desabamento do prédio Palace II, em 1998, na Barra da Tijuca, que deixou oito mortos e mais de 150 desabrigados. Diante da movimentação da União para bloquear o dinheiro das vítimas, o ministro intercedeu pessoalmente junto aos beneficiários orientando que fizessem uma vigília no Banco do Brasil, que tentava adiar para a manhã seguinte a transferência, quando então o governo federal passaria a ter acesso aos recursos. Salomão determinou o pagamento imediato da indenização, sob pena de prisão a quem descumprisse. No dia 31 de julho de 2004, as famílias começaram a receber os depósitos em suas contas.
Ele ainda atuou como promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), mas logo abandonou a posição de denunciante para assumir a função de julgador na pequena comarca de Casimiro de Abreu, no estado do Rio, onde passou a infância. Teve passagens pelos principais juizados do Rio até ser indicado, em 2008, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Superior Tribunal de Justiça.
Em 2017, Salomão chegou ao TSE para assumir o cargo de ministro substituto. No processo eleitoral de 2018, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), à época presidente da Corte Eleitoral, o designou para atuar numa equipe que focaria na propaganda eleitoral composta pelos magistrados Carlos Horbach e Sérgio Banhos, que permanecem até hoje no tribunal.
Torcedor do Fluminense, Salomão recorre ao futebol para descrever o seu trabalho no pleito de 2018. “É como se num jogo o juiz deixasse a partida correr amplamente e não ficasse apitando toda hora que tivesse alguma dúvida sobre uma entrada”, comenta. “A postura do grupo da propaganda eleitoral era de deixar o debate acontecer, com o mínimo de interferência possível, recorrendo ao apito de juiz somente em casos de faltas graves, como ofensas, abusos e outros crimes eleitorais.”
A atuação no processo eleitoral marcado pelo fortalecimento das redes sociais foi decisiva para que o ministro mergulhasse de vez no funcionamento da máquina política de notícias falsas. Em 2019, Salomão fundou o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (CIAPJ-FGV). Na Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), pesquisa o uso de inteligência artificial na Justiça.
Em artigos publicados no início de 2018, Salomão já comentava sobre os perigos das fake news e indicava as táticas que viria a adotar no TSE: ataque rápido e intenso às fontes de financiamento das mentiras travestidas de informação. “Quando se estuda novas tecnologias, não tem como não abordar a questão das notícias falsas”, diz.
“Como ministro da propaganda eleitoral, eu estava preocupado em ser o mediador do debate. Na corregedoria, eu tenho a função de ser o guardião do pleito e do sistema eleitoral. Tem que ser exercida com rigor.”
Legado
Uma das frentes de manutenção do trabalho da Corregedoria pós-Salomão deverá ser a intensificação das negociações com as plataformas das redes sociais para criar uma política de autorregulação dos conteúdos publicados, com foco na suspensão dos repasses financeiros a produtores de notícias falsas. “Acredito piamente que vamos chegar nessa autorregulação”, avalia o ministro. “Se não for possível, aí sim o tribunal terá que regular essa matéria para não deixar ela completamente solta para as próximas eleições.”
Em agosto deste ano, Salomão apresentou um pedido ao TSE para apurar as declarações infundadas do presidente Bolsonaro de manipulação nas urnas eletrônicas, assim como suas ameaças à realização de eleições em 2022. O plenário da Corte aprovou por unanimidade o requerimento, e ainda solicitou a inclusão do chefe do Executivo no inquérito das fake news, que tramita no Supremo.
Diante do cerco judicial, Bolsonaro não poupou ataques ao trabalho do ministro. Em resposta a uma decisão do corregedor, que no dia 16 de agosto mandou suspender os repasses financeiros das redes sociais a canais de desinformação, o chefe do Executivo disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada ser necessário “botar um ponto final” no “câncer” instalado na Corte.
Como revelou o Estadão, a decisão atingiu os canais do presidente, de seus filhos Carlos(Republicanos-RJ), Flávio (Patriota-RJ) e Eduardo(PSL-SP), assim como os de outros quatro deputados federais e influenciadores bolsonaristas, todos beneficiários de recursos financeiros oriundos de notícias falsas.
Na onda de ataques, o presidente ainda afirmou que o ministro tem cometido “barbaridades” ao atuar em conjunto com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do TSE. “O juiz, por natureza, tem que ser sereno, equidistante e preparado para esse tipo de caso”, afirma Salomão. “Quem ganha fica contente, quem perde crítica. É da natureza da minha função”, ressalta. “Eu nunca responderia qualquer parte do processo, antes, durante e depois do julgamento.”