Guerra na Ucrânia será ‘catastrófica’ para alimentação global, diz gigante dos fertilizantes

A guerra na Ucrânia vai causar um choque “catastrófico” na cadeia de suprimentos e no custo dos alimentos, afirmou Svein Tore Holsether, chefe de uma das maiores empresas de fertilizantes do mundo, em entrevista à BBC.

“Metade da população mundial obtém seus alimentos graças ao uso de fertilizantes, e se isso for retirado de alguns cultivos, essa produção pode cair até 50%”, afirmou Holsether, da Yara International, empresa com sede na Noruega que opera em mais de 60 países e compra quantias consideráveis de matéria-prima da Rússia. “Para mim, não é uma questão se vamos ou não entrar numa crise global de alimentos, mas quão grande será essa crise.”

Segundo ele, antes mesmo da guerra na Ucrânia o preço de fertilizantes já estava alto por causa do aumento da cotação do gás natural. “Agora o cenário tem mudado a toda hora”, disse Holsether.

“Nós já estávamos em situação difícil antes da guerra, e agora há essa quebra da cadeia de suprimentos, enquanto nos aproximamos do período mais importante da temporada para o hemisfério Norte, que é quando muito fertilizante precisa ser transportado e isso provavelmente será impactado.”

A Rússia e a Ucrânia estão entre os principais produtores mundiais no setor agrícola. A Rússia também produz quantias enormes de nutrientes, como potássio e fosfato, que são ingredientes essenciais para os fertilizantes (utilizados para o crescimento das plantações).

Em meio ao agravamento da guerra, a Rússia recomendou aos produtores locais que suspendessem as exportações de fertilizantes e seus insumos. Ainda não se sabe qual será o impacto no Brasil – antes da deflagração do conflito o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, foi à Rússia para, entre outros objetivos, garantir o suprimento de fertilizantes.

Vale lembrar que o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes do mundo (atrás de China, Índia e Estados Unidos) e o maior importador mundial desses insumos. A soja é a principal cultura consumidora de fertilizantes no país. Somada com o milho, a cana-de-açúcar e o algodão, essas quatro culturas absorvem mais de 90% do fertilizante produzido ou importado pelo Brasil, diz a Embrapa.

Em linhas gerais, o Brasil importa 85% dos fertilizantes que utiliza, e a Rússia responde por 23% dessas importações. A eventual falta de potássio é a que mais preocupa o setor e “certamente vai haver desabastecimento mundial” desse nutriente, dizem analistas.

O nitrogênio é obtido a partir do gás natural, combustível do qual a Rússia é o segundo maior produtor do mundo e o maior exportador. O fósforo e o potássio, por outro lado, são produtos minerais, dos quais o país de Vladimir Putin tem minas abundantes.

Busca por fornecedores alternativos

A Yara International já foi atingida diretamente pelo conflito depois que um míssil atingiu o escritório da empresa na capital ucraniana, Kiev. Os 11 funcionários que estavam no local saíram ilesos.

E ainda que não tenha sido atingida diretamente pelas sanções contra a Rússia adotadas por potências globais, ela precisa lidar com as consequências das medidas. Além disso, tentar assegurar as entregas se tornou ainda mais difícil por causa do impacto na indústria logística.

Segundo Holsether, a Rússia é responsável por um quarto dos nutrientes essenciais para fertilizantes na produção de alimentos na Europa. “Estamos fazendo todo o possível para encontrar fornecedores alternativos, mas há limites por causa do cronograma apertado.”

Analistas de mercado também alertaram que a troca de fornecedores significaria custos mais altos para os agricultores e menores rendimentos das colheitas. Isso poderia gerar custos ainda mais altos para os alimentos.

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem repetido que o Brasil tem opções para importar fertilizantes, citando como exemplos Irã, Canadá e Marrocos. Mas especialistas do setor avaliam que a situação não é tão simples e que a gravidade do cenário varia de insumo a insumo.

Segundo Marcelo Mello, da StoneX, o quadro mais preocupante é o do potássio, que tem Canadá, Belarus e Rússia como maiores produtores, com fatias de 40% e 20% do mercado cada, respectivamente. Ou seja, os três países somam quase 80% da oferta mundial.

“Não é mais uma questão de ‘talvez vamos ter uma crise de abastecimento’. Nós certamente vamos ter uma crise. Certamente haverá desabastecimento, não só no Brasil, mas mundial”, afirmou o consultor em entrevista à BBC News Brasil.

Outros países produtores de potássio, como Israel, Chile, Jordânia e Alemanha, produzem volumes pequenos e que já têm compradores, assim resta como alternativa o Canadá.

“Mas somos nós indo para o Canadá e toda a torcida do Corinthians”, brinca Mello. “Então, é muito pouco provável que o Canadá consiga repor a falta que Rússia e Belarus farão no mercado.”

Em relação ao fósforo, a Rússia é o terceiro maior exportador, atrás de China e Marrocos. Aqui, segundo o consultor, se 100% das exportações russas forem bloqueadas, não deve faltar fósforo no mundo, mas a situação deve ficar muito similar à do potássio antes da guerra. Ou seja, com um mercado muito apertado e preços elevados.

Por fim, no caso do nitrogênio, matéria-prima para a produção de ureia, muito usada no Brasil como fertilizante e na produção de fórmulas, a Rússia só fica atrás nas exportações se o Oriente Médio é considerado em conjunto, já que países como Arábia Saudita, Catar e Irã – grandes produtores de petróleo e gás natural – são importantes exportadores.

Aqui, explica o consultor, mesmo que as exportações russas sejam totalmente bloqueadas, não deve faltar produto, pois a China está atualmente fora do mercado internacional (o que acontece sazonalmente entre dezembro e março, durante o inverno chinês), mas deve voltar a produzir em maio.

Mas os nutrientes não são o único fator a ser considerado. Enormes quantidades de gás natural são necessárias para produzir amônia, o principal ingrediente do fertilizante de nitrogênio. A Yara International, por exemplo, depende de grandes quantidades de gás russo para suas plantas europeias.

Em 2021, a empresa foi obrigada a suspender temporariamente a produção de cerca de 40% de sua capacidade na Europa por causa da alta do preço do gás no atacado. Outros produtores também suspenderam o fornecimento.

Assim, no ano passado, o preço dos fertilizantes subiu graças a uma combinação de diversos fatores, como taxas de embarque mais altas, sanções a Belarus (outro grande fornecedor de potássio no mercado global) e condições climáticas extremas. Por consequência, o preço dos alimentos também subiu.

Para o chefe da Yara International, o mundo deve buscar, a longo prazo, reduzir sua dependência da Rússia para a produção global de alimentos.

“Por um lado, estamos tentando manter o fertilizante fluindo para os agricultores para manter os rendimentos agrícolas. Ao mesmo tempo… tem que haver uma forte reação. Condenamos a invasão militar russa da Ucrânia. Sinceramente, é um dilema muito difícil.”

As mudanças climáticas e o crescimento das populações já vinham aumentando os desafios que o sistema global de produção de alimentos enfrentava antes mesmo do início da pandemia.

O executivo-chefe da Yara International descreve a guerra como “uma catástrofe em cima de uma catástrofe”, destacando o quão vulnerável a choques a cadeia global de fornecimento de alimentos está atualmente. Um dos principais exemplos é a pandemia de covid-19.

Por causa de fatores como pandemia, inflação e desemprego, a fome atingiu no Brasil 19,1 milhões de pessoas em 2020, parte de um contingente de 116,8 milhões de brasileiros que convivam com algum grau de insegurança alimentar – número que corresponde a 55,2% dos domicílios, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Penssan.

O aumento no número de brasileiros passando fome, de 10,3 milhões em 2018, para 19,1 milhões em 2020, representa um crescimento de 85% em dois anos.

A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome propriamente dita.

 

* Com informações adicionais de Thais Carrança, da BBC News Brasil, em São Paulo

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