Goleiro Bruno: “Times veem marketing no feminícidio”, diz professora da CBF

Na semana passada, o goleiro Bruno, condenado a 20 anos de prisão pelo assassinato de Eliza Samudio, foi contratado pelo clube Araguacema, do Tocantins. Essa não é a primeira vez que Bruno Fernandes consegue voltar ao futebol 11 anos após ter sequestrado, assassinado e ocultado o cadáver de sua ex-namorada e mãe de seu filho.

Para a jornalista Olga Bagatini, 26, especialista em futebol feminino e docente da CBF Academy (braço educacional da Confederação Brasileira de Futebol), os clubes veem em Bruno um trunfo positivo para o marketing.

Mas é um marketing sujo. Para nós, que lutamos para ocupar espaço e combater o machismo no esporte, é uma falta de respeito enorme, como se dissessem: a mulher não vale nada no futebol, afirma

Em entrevista a Universa, Olga, que também é mestre em jornalismo esportivo pela St. Mary’s University, em Londres, comenta a contratação de Bruno e outros episódios em que os jogadores foram “perdoados” pela opinião pública — resultado de um “pacto de silêncio” entre os homens no futebol, enquanto, para as mulheres, “qualquer erro tem mais peso”.

UNIVERSA: O goleiro Bruno foi novamente contratado, agora pelo Araguacema, do Tocantins. Por que o futebol perdoa um feminicídio?

Olga Bagatini: Não é só o futebol. Em toda situação em que um homem rico e poderoso comete um crime, a gente tende a priorizar a reputação dele em detrimento da vítima. Isso acontece no cinema, por exemplo, e em outras modalidades esportivas. Mas o futebol tem alguns agravantes: primeiro, é um espaço ocupado e comandado por homens, e isso faz a voz da mulher valer ainda menos. A desculpa de que ele merece uma segunda chance cai por terra, porque eu duvido que esses clubes por onde ele passou depois de cometer um feminicídio tenham ex-detentos ressocializados em outros postos de trabalho.

Os clubes enxergam no feminicídio da Eliza Samudio uma coisa positiva para o marketing, e por isso querem o Bruno no time. Mas é um marketing sujo. Para nós, que lutamos para ocupar espaço e combater o machismo no futebol, é uma falta de respeito enorme, como se dissessem: a mulher não vale nada no futebol.

Recentemente, vimos episódios de comportamento condenável na pandemia por parte de jogadores, em que eles não respeitaram os protocolos de saúde: Gabigol preso em um cassino lotado, e Neymar, que deu uma festa de Réveillon. Mas eles não saíram com a imagem manchada…

Pois é. A gente endeusa tanto esses caras, esses 5% dos craques, que eles se sentem acima da lei. Tem muitos casos de sonegação de impostos também que passam sem punição.

Eles acham que podem fazer qualquer coisa, que a imprensa esportiva e a torcida, compostas por maioria masculina, vão perdoar, que não vai ter punição. Eles saem sem nenhum arranhão na imagem. É como se existisse um pacto de silêncio entre os homens. Cabe a nós lembrar que o futebol não está acima da lei.

A Lindsay Camila, da Ferroviária, disse em entrevista a Universa que, em contrapartida, as mulheres são muito mais cobradas para não errar. Você concorda?

A mulher no esporte, seja atleta, treinadora, jornalista ou torcedora, tem que se provar muito mais, mostrar conhecimento o tempo todo. É aquela velha história: “Ah, você gosta de futebol? Então fala aí a regra do impedimento”.

O erro de uma mulher no esporte tem muito mais peso. Com a proibição do futebol feminino no Brasil, entre 1941 e 1979, há um imaginário de que futebol não é lugar para mulher, então qualquer errinho, por menor que seja, reforça essa ideia.

O maior exemplo disso é a passagem da Emily Lima pela seleção feminina: ela foi a primeira treinadora, ficou só dez meses no cargo e saiu sem ter a chance de disputar um campeonato oficial. Enquanto isso, o Vadão, que fez um trabalho péssimo, ficou dois ciclos no cargo.

Qual o lugar que as mulheres ocupam no futebol brasileiro?

Historicamente, é um lugar de objeto. Fica ali no estúdio de um programa esportivo, por exemplo, não como apresentadora, mas como se fosse uma peça decorativa. O mesmo acontece entre as atletas.

Para você ter uma ideia, em 2001, no regulamento do Campeonato Paulista Feminino, constava que os clubes deveriam usar como critério de escolha das jogadoras beleza e sensualidade.

A Sissi, a primeira grande número 10 — para mim, até melhor do que a Marta — é a única brasileira reconhecida pelo FIFA Legends (lista de atletas considerados lendas pela FIFA), mas ninguém sabe quem é porque era sapatão, tinha cabelo raspado, batia de frente com a CBF e foi ‘apagada’. Ela é a prova de que, quando a mulher não se encaixa no perfil da musa, não tem espaço no futebol.

Tramita na Câmara uma proposta para restringir premiações desiguais para homens e mulheres no esporte. Na prática, o quão longe estamos de igualar as remunerações?

Eu acho difícil a equiparação dos prêmios acontecer em todos os campeonatos a curto prazo. Nos Jogos Olímpicos, a premiação é igual, mas na Copa do Mundo, não. Mesmo quando o valor pago pelas federações a homens e mulheres é igual, tem direito de imagem e patrocínios pessoais que ainda são muito desiguais.

Mas eu não acho que o pagamento igualitário seja a prioridade do futebol feminino agora. Isso é um objetivo a longo prazo, o que a gente precisa agora é de igualdade no tratamento — ou seja, mais oportunidades para as jogadoras, investimento na formação das atletas, nas categorias de base, nas escolinhas dos clubes.

Até pouco tempo atrás, uma menina de 14 anos tinha a mesma formação técnica no futebol que um menino de 7 anos, porque começam a jogar muito mais tarde.

Jogadoras da seleção brasileira comemoram o gol contra a Jamaica, na Copa do Mundo de 2019 – REUTERS/Denis Balibouse – REUTERS/Denis Balibouse

Jogadoras da seleção brasileira comemoram gol contra a Jamaica, na Copa do Mundo de 2019; o Mundial, transmitido pela Globo, ajudou a levar o futebol feminino para mais pessoas

E por onde começamos a mudar isso?

A gente precisa incentivar as meninas a jogar cada vez mais cedo e investir na formação delas. Só isso vai fortalecer as próximas gerações de jogadoras e, consequentemente, os campeonatos, a cobertura da mídia, os patrocínios — e, por fim, os pagamentos.

Qual é o papel da imprensa nesse cenário? De que forma a cobertura esportiva ajuda a acelerar ou atrasar o desenvolvimento do esporte feminino?

Esse é o meu objeto de estudo. Depois da proibição do futebol feminino, vimos os veículos sexualizando as jogadoras, dirigentes falando que as mulheres tinham que jogar de maquiagem e shorts. Isso ajudou a construir a imagem da mulher-objeto no futebol.

De lá para cá, tiveram episódios muito absurdos, alguns que ainda acontecem: fazer perguntas sobre maternidade colocando a mulher como única responsável pelos filhos, sobre dieta, segredos de beleza, pedir para a atleta dar uma voltinha para a câmera, por exemplo, além de diminuir o feito das mulheres no esporte, claro.

Essas são coisas que a imprensa sempre reproduziu, mas têm diminuído desde 2015, mais ou menos, com mais diversidade nas redações e o barulho do movimento das mulheres na internet — esse tipo de coisa não passa mais sem fazer barulho.

O machismo no futebol não afeta só atletas. De que forma a desigualdade de gênero afeta corpo técnico, jornalistas e até torcedoras?

Tem histórias de jornalistas que estão cobrindo jogos em campo e a multidão xinga de tudo que é nome, além dos episódios em que elas são beijadas por torcedores sem consentimento, são condições de trabalho terríveis, violências muito sérias. Esse tipo de preconceito também ocorre entre os dirigentes dos clubes, que não levam a sério entrevistas de mulheres jornalistas, e até entre colegas de trabalho. Entre as torcedoras, é comum ter medo de ir sozinha ao estádio, ou de ser proibida de sair em caravana junto com a torcida organizada. Tem torcida que não deixa mulher levantar bandeira no estádio, por exemplo. As marcas de material esportivo só agora têm colocado camisas femininas, como se a mulher não fosse torcedora fanática também.

No futebol, esse machismo vem de todos os lados. Mulheres na gestão dos clubes ainda são pouquíssimas, porque os torcedores não aceitam. E não acho que essa barreira vai ser quebrada tão cedo.

O Brasil já teve leis que prejudicavam a participação das mulheres no futebol, como a proibição, até a década de 80, e o regulamento da Federação Paulista de 2001, que você mencionou. Tem alguma norma do tipo valendo hoje?

A FIFA só aprovou a licença-maternidade para as jogadoras no ano passado, então esse é um processo que ainda está em curso.

Nós temos somado conquistas em direção à igualdade de gênero no esporte, mas ainda precisamos marcar posição todos os dias para evitar retrocessos.

Dessas conquistas recentes, quais foram as mais importantes?

Em 2018, a FIFA lançou uma diretriz global para o futebol feminino que obrigou as confederações nacionais a se mexerem. Com isso, a Conmebol e a CBF estabeleceram que todos os times, para competir, precisam ter uma equipe feminina adulta e uma de base. Neste período, a CBF trouxe a Pia [Sundhage, treinadora da seleção feminina desde 2019] e a Aline Pellegrino [à frente da Coordenação de Competições Femininas].

 

Eu destacaria, também, uma mudança editorial no jornalismo esportivo. Na Globo, por exemplo, com mulheres narrando os jogos e comentando também. E, por fim, a Copa do Mundo de futebol feminino de 2019, que a FIFA tratou pela primeira vez como um produto, investindo em marketing, trazendo bons patrocinadores. O evento foi transmitido pela Globo, com narração do Galvão Bueno — isso fez o futebol feminino chegar a pessoas que só a televisão consegue atingir. Foi um verdadeiro divisor de águas.

Mariana Gonzalez – De Universa

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