Em reunião, Salles tenta “passar a boiada”
Esvaziado por Bolsonaro, Conama se reúne sob o ministro e com a revogação de resoluções de proteção ao meio ambiente em pauta. Sem resistência da sociedade civil, mudanças devem ser aprovadas com facilidade.
Quando os motores que bombeiam a água do rio Arrojado para os sistemas de irrigação das grandes propriedades agrícolas começam a funcionar em Correntina, no oeste da Bahia, as comunidades que ficam logo abaixo sabem que as torneiras de suas casas ficarão secas. As águas desse rio, que integra a Bacia do São Francisco, parecem não ser mais suficientes para abastecer a população e os pivôs centrais que irrigam cultivos de grandes produtores.
“Isso porque os processos de irrigação são outorgados, são legais. Imagine o que pode acontecer se o licenciamento ambiental não for mais necessário? Seria um caos completo, com muitos conflitos”, comenta Naidison de Quintela Baptista, coordenador nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), que acompanha de perto os conflitos na região.
Esse tipo de licenciamento é importante para que a retirada da água autorizada considere o impacto no ambiente do entorno, na vegetação, nas nascentes dos rios, no uso comunitário e coletivo da água. Mas ele está prestes a ser abolido.
Nesta segunda-feira (28/09), uma reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), órgão colegiado responsável por regras para uso dos recursos, controle da poluição e da qualidade do meio ambiente em geral, pode suspender a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para projetos de irrigação.
Na pauta da reunião, presidida pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, estão a anulação das resoluções nº 284/2001, sobre licenciamento de empreendimentos de irrigação; nº302/2002, sobre definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno; e nº 303/2002, sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente.
De volta à ação depois da polêmica mudança feita via decreto do presidente Jair Bolsonaro em 2019, que reduziu o número de cadeiras do conselho de 96 para 23 e praticamente anulou a participação da sociedade civil, a expectativa é que tudo o que for proposto passe com facilidade.
“O regimento interno foi alterado com base numa artimanha, e eu não encontro outra palavra para descrever o que aconteceu. As porteiras que foram abertas para passar a boiada do ministro do Salles são perceptíveis. Há uma disparidade de representações”, analisa José Leonidas Bellem de Lima, procurador Regional da República do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo, fazendo referência a uma declaração recente do ministro do meio ambiente.
“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid-19, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério do Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços”, disse Salles numa reunião ministerial realizada em abril e tornada pública em maio deste ano.
Com a reformulação do Conama, decretada por Bolsonaro já no ano passado, os ministérios da Economia, Infraestrutura, Agricultura, Minas e Energia, Desenvolvimento Regional, Casa Civil e a Secretaria de Governo mantiveram representantes no conselho. A sociedade civil, que tinha 23 representantes no colegiado e contava com ambientalistas, membros de povos indígenas e tradicionais, trabalhadores rurais, policiais militares e corpos de bombeiros e cientistas, agora tem direito a apenas quatro cadeiras.
“O Conama é um órgão de proteção ambiental, e se a maioria dos assentos é dada para os que defendem interesses que nada têm a ver com esse propósito de proteger o meio ambiente, as propostas vencedoras serão sempre as deles. Qualquer coisa proposta já passa, porque eles [o governo] têm maioria”, diz Lima, que representou o MPF no Conama.
Ele também é um dos autores da representação que baseou uma ação ajuizada pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, contra o decreto de Bolsonaro relativo ao Conama, publicado no fim de maio de 2019. “O decreto que o governo fez é inconstitucional. Na prática, ele anulou a participação da sociedade civil no Conama. Não há mais nenhuma resistência”, justifica o procurador.
Saúde pública e lobby
Diante desse cenário, o MPF se apressou na tentativa de barrar mais retrocessos ambientais. O órgão enviou uma recomendação ao Ministério do Meio Ambiente para que ele não admita a discussão no Conama de uma outra pauta-bomba: a flexibilização ou suspensão de regras que limitam a poluição do ar provocada por veículos.
Em 2018, depois de anos de intensos debates, o Conama aprovou resoluções que limitam a emissão de poluentes e ruídos de novos veículos pesados, como ônibus e caminhões, e estabeleceu padrões mais rigorosos de qualidade do ar para todo o país.
As medidas, em vigor na União Europeia desde 2014, trariam benefícios não apenas ambientais, mas para a saúde, já que poluentes como partículas finas aumentam os riscos de doenças cardíacas, câncer de pulmão e acidentes vasculares.
Acertadas no contexto do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), criado em 1986, as regras começariam a vigorar a partir de janeiro de 2022 e deveriam ser cumpridas pelas montadoras.
Desde junho, porém, algumas fabricantes de veículos têm falado publicamente em adiar os prazos por mais dois ou três anos, mas técnicos avaliam que “não há justificativa plausível para a postergação”.
Segundo o documento enviado ao ministério e assinado pela subprocuradora-geral da República Julieta Cavalcanti de Albuquerque, a demora para agir “impacta direta e gravemente a saúde da população, havendo estudos específicos para o caso brasileiro que estimam, para cada ano de atraso na implementação dos padrões P8, a ocorrência de 2.500 mortes prematuras”.
“Na ocasião da votação referente à qualidade do ar, o único órgão do governo que se apartou da decisão e que não votou com a maioria foi o Ministério da Saúde, porque tinha a certeza de que aquilo não faria bem à saúde”, pontua Lima. Na nova composição do Conama, esse ministério foi excluído.
Na visão do cientista Paulo Roberto Martini, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e ex-conselheiro do Conama que participou do debate sobre os níveis de poluentes, as mudanças que virão pela frente serão desfavoráveis para a maioria dos brasileiros.
“A presença da sociedade civil equilibrava a ação de lobistas de tomar decisões que favorecem apenas o agronegócios ou a indústria sem pensar na saúde pública, na população como um todo”, diz Martini, que representava a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Sobre a pauta anunciada para a reunião desta segunda-feira, o pesquisador prevê diversos impactos negativos. “A crise socioambiental vai acelerar. O impacto será muito grande na agricultura familiar, que ainda é a grande fonte de alimento sadio para o país. Se não houver água, uma bacia hidrográfica fluente, todo o conjunto de biodiversidade será prejudicada”, diz sobre a desobrigatoriedade de licenciamento para projetos de irrigação.
Para os moradores do semiárido, o caos estaria anunciado. “Imagine se cada empresa, cada grupo, faz o que quiser. A irrigação em larga escala, mesmo licenciada, é predatória, pois não está preocupada com a quantidade de água que retira dos rios”, comenta Baptista, da ASA.
Consultado, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu aos questionamentos da DW Brasil.
Autor: Nádia Pontes