Ao deixar de apoiar quarentena, Bolsonaro se isola de líderes globais
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© AFP A revista americana The Atlantic afirmou que Bolsonaro ‘é o líder negacionista do coronavírus’
Apesar de pela primeira vez reconhecer a gravidade da pandemia de coronavírus no mundo, em seu último pronunciamento à nação, na noite desta terça-feira (31), o presidente brasileiro Jair Bolsonaro seguiu sendo o único líder de grandes economias a não recomendar à sua população que fique em casa para evitar que a doença se espalhe pelo país.
Ao recusar as recomendações sanitárias adotadas mesmo por governantes que antes as rejeitavam, como o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e os presidentes americano, Donald Trump, e mexicano, Andrés Manuel Lopez Obrador, ele chegou ao ápice do seu isolamento internacional.
“Jamais, numa história de quase 200 anos, o Brasil e sua diplomacia tinham assistido a tal grau de isolamento internacional, jogando as elites dirigentes num descrédito nunca antes igualado, mesmo nas piores crises econômicas ou nas graves violações de direitos humanos. Não creio que existam precedentes para a atual situação”, afirmou o embaixador Paulo Roberto de Almeida, atualmente lotado na divisão de comunicação e arquivo do Itamaraty e professor do Uniceub.
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Nos últimos dias, a imprensa internacional tem criticado duramente a postura de Bolsonaro. “O presidente coloca os brasileiros em risco”, afirmou o jornal britânico The Guardian em editorial na terça (31). A revista americana The Atlantic afirmou que Bolsonaro “é o líder negacionista do coronavírus”. A britânica The Economist o chamou de “Bolsonero”, em referência ao imperador romano Nero que teria mandado incendiar a capital de seu império, Roma.
“Há muita concorrência, mas o líder mundial mais ineficaz em responder ao coronavírus agora é o presidente Bolsonaro. Prejudicará seriamente seu mandato”, afirmou o analista político, Ian Bremmer, fundador da consultoria Eurasia, uma das mais importantes e prestigiadas no mercado. Bremmer tem dito a seus clientes — algumas das mais poderosas empresas do mundo — que o comportamento de Bolsonaro diante da epidemia pode lhe render um impeachment.
“Bolsonaro é hoje o único líder que ignora completamente a recomendação científica e tem sido tratado como um pária por causa disso”, afirma o professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas, Guilherme Casarões.
O percurso do isolamento global
Tanto Casarões quanto Almeida concordam que a atual posição insular do Brasil é o aprofundamento de um processo que tem se desenrolado nos últimos 16 meses, quando Bolsonaro assumiu o cargo e passou a adotar uma série de guinadas nas condutas do país em fóruns internacionais.
O Brasil passou a se alinhar a um grupo minoritário de países, liderados por Estados Unidos e Israel. Se manifestou pela primeira vez a favor do embargo econômico americano contra Cuba, prometeu levar sua embaixada em Israel para Jerusalém, o que fere as relações com países árabes, e abandonou a neutralidade diante do conflito entre Irã e EUA.
© Reuters Donald Trump mudou de tom e postura diante da pandemia e seu avanço nos EUA
Tais mudanças foram gradativamente minando a postura brasileira como um possível negociador ponderado no ambiente internacional. “O pico anterior nessa espiral de descrédito global que vivemos foi a crise das queimadas na Amazônia”, afirma Casarões.
Diante de um aumento significativo do desmatamento na floresta tropical, em agosto do ano passado, Bolsonaro culpou indígenas e ONGs pelos incêndios que devastavam a área. Seu ministro de relações internacionais, Ernesto Araújo, passou a fazer discursos relativizando a importância da ação humana sobre o aquecimento global e dizendo que os europeus deveriam reflorestar seus territórios em vez de falar sobre a Amazônia.
O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que Bolsonaro “não estava a altura de seu cargo”. A Alemanha e a Noruega cortaram o fundo de proteção bilionário que destinavam à conservação do bioma.
Naquele momento, no entanto, o Brasil pôde contar com a intercessão dos Estados Unidos para baixar o tom crítico ao país entre os mandatários do G-7 e impedir que a tensão derivasse para sanções à produção brasileira.
O mesmo não deve acontecer agora. Na noite de terça, enquanto Bolsonaro se esquivava de recomendar quarentena aos brasileiros, Trump afirmava que mesmo com as medidas de distanciamento social aplicadas, os EUA devem perder entre 100 mil e 240 mil cidadãos para epidemia.
O presidente americano tem evitado criticar publicamente o colega brasileiro, com quem tem boa relação, mas afirmou que estuda o banimento total de voos do Brasil aos Estados Unidos.
Na quarta-feira (1), os dois líderes se falaram pelo telefone para reafirmar a solidariedade entre os povos e comentar a situação diante da pandemia.
Segundo Ernesto Araújo, os modelos de isolamento para conter o espalhamento do vírus não foram tema da conversa. Em coletiva na Casa Branca, Trump foi questionado mais uma vez sobre a postura de Bolsonaro. Repetiu que ele tem feito “um grande trabalho” e afirmou: ” Ele (Bolsonaro) tem um problema com o vírus. Ele tem um grande problema. Nós conversamos sobre isso hoje. Eles não iam parar, mas precisaram parar. Então, o Brasil está paralisado. O mundo está paralisado”.
Por um curto período, na semana passada, tanto Trump quanto Bolsonaro pareciam inclinados a adotar a solução conhecida como isolamento vertical: restringir a circulação apenas de pessoas dos grupos de risco para covid-19 e manter a economia funcionando normalmente.
Trump, que concorrerá à reeleição em novembro, afirmou que o país voltaria ao normal na Páscoa. Tudo mudou antes do fim de semana, quando os médicos que o assessoram mostraram a ele que a curva de mortalidade nos Estados Unidos ficava mais íngrime a cada dia. No fim de semana, um navio hospital da Marinha americana atracou em Nova York para ajudar no atendimento a vítimas de covid-19.
Nem mesmo o ex-assessor de Trump, Steve Bannon, guru dos Bolsonaro e da extrema direita pelo mundo, é a favor da estratégia defendida pelo brasileiro.
Para o embaixador Almeida, “Bolsonaro se coloca voluntariamente na contramão de tendências globais, inclusive demonstradas agora no caso de Trump, a quem considera seu principal aliado externo, e se refugia num pequeno círculo de ideólogos supostamente antiglobalistas que só conseguem expressar preconceitos e ignorância, recusando os dados básicos da ciência e da pesquisa”.
O governo não pode fazer tudo
Almeida se refere à influência sobre as decisões do governo do escritor Olavo de Carvalho, radicado nos Estados Unidos, que já negou a existência da epidemia de coronavírus e gosta de repetir que a causa do problema é “um vírus chinês”.
Em meio à crise de saúde pública, o filho de Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, ex-aluno de Olavo de Carvalho, abriu uma crise diplomática com os chineses ao acusar o país, via Twitter, de espalhar a doença globalmente.
“Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor, tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, escreveu Eduardo. O embaixador da China no Brasil Yan Wanming exigiu um pedido de desculpas e disse que o povo chinês foi insultado.
© Reuters Nem mesmo o ex-assessor de Trump, Steve Bannon, guru dos Bolsonaro, é a favor da estratégia defendida pelo presidente brasileiro
Carvalho é também uma das referências políticas e teóricas das diretrizes adotadas pelo chanceler Ernesto Araújo.
“Bolsonaro tem deixado de ouvir o (ministro da saúde Luiz Henrique) Mandetta e se aconselhado mais de perto com Ernesto Araújo. Araújo vem ajudando Bolsonaro a criar uma narrativa de que não existe nada de diferente no que essa gestão faz em relação ao resto do mundo. Para o público internacional, é evidente que não cola. Mas para os eleitores brasileiros pode funcionar”, diz Casarões.
Parte dessa estratégia teria sido colocada em prática na manhã de terça, quando Bolsonaro sugeriu que a própria OMS estaria voltando atrás em sua orientação de quarentenal total diante das perdas econômicas aos mais pobres.
O argumento é falso. As orientações do órgão são para que o distanciamento social seja mantido e para que os governos minimizem, por meio de ajudas emergenciais, os efeitos negativos sobre a população de baixa renda. O Congresso Nacional aprovou na última segunda-feira a renda emergencial de R$ 600 por mês a brasileiros em condições de vulnerabilidade.
O Ministério da Cidadania afirmou, em um primeiro momento, que a verba só seria disponibilizada aos necessitados depois de meados de abril. A morosidade tem gerado crítica de falta de vontade política do presidente para viabilizar o auxílio e, em consequência, a quarentena. “Não é esperar que o governo faça alguma coisa. O governo está fazendo, mas não pode fazer tudo que acham que o Estado tem que fazer”. afirmou o presidente, no dia 26.
Em coletiva de imprensa na quarta, Araújo respondeu indiretamente às críticas de isolamento do país no cenário internacional e disse que as discussões no G-20 “estão muito em linha com o que pensa o presidente Bolsonaro” e que o grupo se tornou um meio de trabalho em conjunto entre as nações.
Via Twitter, o chanceler disse ainda, no dia 27, que nem todos os países do G-20 tem mantido compulsoriamente suas populações em confinamento, embora não mencione a recomendação geral entre esses governantes de que sua população fique em casa. “A informação pura e simples é de que 6 países do G20 aplicam quarentena mandatória em todo o seu território, enquanto 2 a aplicam em alguns Estados federados e outro já a aplicou também em parte do território, mas não aplica mais”.
Araújo concluiu: “Essa informação parece incomodar aqueles que insistem em construir uma certa narrativa — uma ideologia — acima tanto da saúde das pessoas quanto da sua subsistência.” A BBC News Brasil pediu uma entrevista com o ministro Araújo, mas o Itamaraty informou que a agenda do chanceler estava cheia.
A recente moderação do discurso de Bolsonaro não significa, dizem os especialistas, que ele irá mudar sua orientação sobre o combate ao coronavírus no curto prazo. Mas a pressão sobre ele, não só doméstica, mas internacional, deve aumentar.
“O risco dessa vez”, diz Casarões, “é que negar a questão é muito mais complicado do que negar o aquecimento global, que vai levar gerações para mostrar seus estragos, ou mesmo negar o desmatamento, que é pouco visível para as pessoas. Em semanas, Bolsonaro vai ter que manter suas palavras sobre uma pilha de corpos. Pode ser que aí ele esteja disposto a recuar.”