Amambai – Patrimônio da união de um povo
A ideia dos escritos denominados CONTOS AMAMBAIENSES é retratar, sob a ótica de uma visão infanto-juvenil do autor, corriqueiros fatos da vida amambaiense ocorridos nos idos do fim da década de 70 e correr dos anos 80.
Então, a leitura não deve ser animada pelo afã de descobrir precisão de datas nem fidedignidade de versões de fatos outrora ocorridos. São apenas vislumbres de ocorrências contempladas e/ou vivenciadas por um par de olhos curiosos e ávidos por novidades da vida, mas sem a necessária maturação para entender talvez desenhos mais sérios que possivelmente tenham circundado certos fatos relatados, de modo que apenas em certa perspectiva eles ficaram gravados na memória infanto-juvenil, a qual, segundo penso, tem um abençoado filtro, cuja principal finalidade possivelmente seja poupar os que ainda estão em formação da crueza e severidade da vida. O recurso de que me valho são as minhas memórias da infância. Então, se algum leitor identificar alguma incorreção, peço que dê o necessário desconto, pois a fonte utlizada é apenas a ainda imatura mente de um dos “guri do Havarde”.
O ano era 1982. O colégio, Dom Aquino Corrêa, situado, à época, na Av. Pedro Manvailer, esquina com a Rua Marechal Deodoro.
Cursava eu a quinta série daquela faixa estudantil que, naqueles tempos, era conhecida como ginásio. Era muito ansiado pela meninada o passo do primário (1º ao 4º ano) para o ginásio (5º ao 8º ano). Parece que galgávamos um degrau importantíssimo da existência. Era realmente um degrau, mas nada mais do que isso. Mas o fato de sair da fase do primário, vocábulo que traz em si embutida uma ideia de limitação ou imaturidade, parecia libertador e com uma grande carga de autoafirmação. Embora só parecesse, essa simbologia era muito importante, como há várias outras que, na prática, não implicam profunda mudança, mas, para cada um que a conquista, pelo menos naquele momento, significa um gigantesco passo existencial. Exemplo disso é ser aprovado no exame e, por direito, possuir a Carteira Nacional de Habilitação. Muitos a possuem e, na verdade, representa apenas mais uma função a ser desempenhada no palco da vida. Mas quando conquistamos esse reconhecimento pelos órgãos de trânsito, no geral, ficamos radiantes e, quase sempre, buscamos algum tipo de fiscalização para que possamos, garbosamente, exibi-la, como se um troféu fosse. Então, aplicando essa analogia, há de se reconhecer que iniciar o ginásio era muito significativo.
Estava eu cursando a quinta série em 1982. De novo, diga-se de passagem.
O ano de 1981 foi, digamos, meio turbulento no meu campo estudantil. Reprovei! O preço foi alto. Após muitos “conselhos” paternos, lá fui eu triunfante para o ano letivo de 1982. Fui muito bem. Tirei excelentes notas em todas as matérias, até na temível matemática, responsável pela minha patinada no ano anterior. Esses dois anos foram muito marcantes, especialmente para os brasileiros amantes do esporte. Se em 1981 tivemos a grande alegria de testemunhar o triunfo brasileiro na fórmula 1 (Nelson Piquet foi campeão, sobrepujando o seu arquirrival, o argentino Carlos Reutemann), em 1982 sentimos amarguíssimo gosto da derrota para a Itália na copa da Espanha, naquele jogo que ficou conhecido pela alcunha de A Tragédia de Sarriá. Assim é a vida – não se ganha sempre.
Não vou entrar em detalhes, mas o público que porventura se interessar em ler os episódios de CONTOS AMAMBAIENSES saberá exatamente o que deve ser lido no lugar de “conselho”. Para uma boa parte da gurizada, na qual eu e meus irmãos nos incluíamos, o sistema educacional doméstico era, para usar um eufemismo, bem peculiar. É certo que, vez ou outra, havia alguns exageros. Mas, no geral, as correções de outrora foram extremamente benéficas. Pelo menos é a minha convicção. Se possíveis exageros podem representar um movimento extremado do pêndulo, a educação de filhos, atualmente, consiste, também em movimento pendular, mas no sentido oposto, já que crianças e adolescentes da atualidade, em muitos lares, foram alçados ao status de verdadeiros príncipes, cujos pais são subservientes vassalos a atender as necessidades e os gostos (as cezes, tão estranhos) de “suas excelências” – os filhos.
Pois bem, estamos no ano de 1982, repetindo a 5ª série.
A querida professora BRANCA lecionava duas disciplinas: Educação Artística e Práticas do Lar. Que coisa hein, tínhamos aulas de como auxiliar no cotidiano doméstico.
Você já parou para pensar como isso faz falta para a geração de jovens e adolescentes da atualidade? Aprendíamos nas saudosas aulas, dentre outros, a coser uma roupa rasgada, recolocar um botão que caíra, fazer barra em uma calça etc. Nas atividades artísticas, certa feita fizemos uma obra de arte em sala utilizando sagu. Nessa oportunidade, houve um incidente razoavelmente sério com o autor destas linhas, o que será objeto de um outro conto.
Também tínhamos outras duas disciplinas que, não obstante possam ser tidas por inusitadas, penso terem sido extremamente úteis: Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil.
Sobre essas duas últimas matérias, vozes podem se levantar contra, ao argumento de que, dada à natureza do assunto, quem as lecionasse poderia manipular o alunado. Mas quando há um manipulador à frente de uma sala de aula, o que menos importa é o tipo de matéria, pois ele sempre tentará bitolar as mentes estudantis. Então, a questão é a propensão do professor e não a natureza da matéria. Na minha convicção, atualmente, nos falta, como nação, uma abordagem mais contundente sobre moral – no sentido de cidadania, e não de um mero puritanismo -, (vemos, infelizmente, um assustador e contínuo galopar do nível de corrupção no nosso país) e também sobre civismo, o que, penso eu, não pode ser confundido com um flerte com direita, esquerda, militarismo, socialismo, facismo, neoliberalismo etc etc. Acho que, no geral, deveríamos ter mais amor pelo nosso país e buscar mais conhecimentos sobre a essência e as raízes da nossa pátria, independentemente de nossas convicções político-partidárias. Penso que falta valorizar os nossos símbolos, tais como a bandeira e o hino, mas também a música, a literatura e as demais produções artísticas nacionais.
Pois bem, voltemos à aula de Educação Artística da professora BRANCA.
Ela passou como tarefa a produção de algum objeto à base de argila (ou o popular barro, do qual eram feitos os famosos bodoques), substância muito abundante nas nossas saudosas barrocas amambaienses. Pelas minhas extremas limitações artísticas, eu não ia além da produção de toscos cinzeiros. Ficavam bem rudimentares, pois eu não
conseguia curvar a contento as moedas para colocá-las no local apropriado, de modo a servir de base para serem depositados os cigarros nos intervalos das baforadas. Enfim, acho que, ao final da obra, só eu reconhecia nela um cinzeiro. Além disso, em outras oportunidades, eu já havia apresentado esse tipo de artesanato. Pensava em inovar, fazer algo diferente e, claro, melhor. Estava difícil, pois a criatividade era (o que, sinceramente, em quase nada mudou) extremamente limitada.
Visitando uma querida tia, descobri que a mesma tarefa fora passada para outras turmas em turnos diferentes. Uma das primas, que também estudava com a professora BRANCA, na mesma série, mas em turno diverso, estava com igual missão.
Detalhe: ela já havia se desincumbido da tarefa que, ao menos para mim, era pesadíssima.
Produzira uma linda jarra. Quer dizer, não era um primor, mas sendo algo artesanal e feito por uma adolescente, apenas com o uso das próprias mãos, estava um espetáculo. Faltava apenas apresentar para receber a avaliação. Como a minha apresentação ocorreria primeiro…
Naquele momento, sabendo da minha angústia em não ter habilidade para fazer algo além de simplórios cinzeiros, veio a mim, não obstante irregular, a irrecusável proposta: no dia e hora marcados, eu apresentaria a linda obra; após ser avaliada e entregue a mim de volta, eu devolveria à prima que, na data marcada para a sua turma, também a apresentaria. Mas isso estava errado! Eu sei, mas não se esqueçam de que se tratava de dois adolescentes meio “cabeça de vento”. Então, na nossa ilusória esperança, tudo daria certo e teríamos excelentes notas. Mas o nosso “negócio” não andou bem, ou melhor, desandou de vez.
Tendo eu apresentado a obra e recebendo excelente avaliação, devolvi agradecido para a prima e fiquei muito satisfeito. Mas nada satisfeita ficou a professora ao reconhecer posteriormente que um mesmo objeto fora apresentado por alunos diferentes.
Aqui, não sei se é póstuma, mas rendo um rasgado elogio para a professora BRANCA e, no geral, também àquele time de professores do colégio Dom Aquino na época, que incluiu, dentre outros, o saudoso Padre Bonfílio (professor de religião), o Indalécio (educação física) e o João Mariano (práticas agrícolas – outra matéria que parece soar estranho, mas era uma preciosidade de ensinamento). Havia um trato com os alunos que ia muito além do vínculo aluno-professor. Quase venerávamos os nossos ensinadores. Havia um grande nível de respeito. E tinha que ser assim mesmo, pois uma reclamação aos nossos pais e o caldo engrossava feio para o nosso lado. E eles, os professores, nos tratavam quase como se fossemos seus filhos. Obrigado, valorosos mestres.
Veja, a professora BRANCA lecionava mais de uma matéria, para várias turmas em turnos e horários diferentes. Não tenho conhecimento de que ela fosse professora também em alguma outra unidade escolar, o que talvez ocorresse e, caso positivo, tornaria a descoberta ainda mais difícil. Mas ela descobriu! Cada sala deveria ter, mais ou menos, uns quarenta alunos. Ou seja, facilmente, é possível intuir que ela avaliou, pelo menos, umas 300 criações de argila. Mas ela conseguiu lembrar que uma certa jarra já lhe tinha sido apresentada anteriormente.
A casa caiu!
Confesso que eu não lembro os exatos desdobramentos dessa “ilicitude”, mas talvez tenha pesado mais sobre a minha querida prima, afinal ela apresentou por último a obra A JARRA.
Embora pareça um paradoxo um escritor desejar que as suas linhas não sejam lidas, espero que a minha prima não leia este conto para não lembrar e ficar novamente irada comigo, mas se, contudo, ler, eu peço, humildemente: perdão, minha querida.
Antonio Manvailer
morando em Ourinhos-SP, com o coração fincado perpetuamente em Amambai-MS