“A Última Floresta”: A força do povo yanomami contra destruição da Amazônia

Um dos maiores povos indígenas isolados da América do Sul, a etnia yanomami vive na floresta amazônica há milhares de anos. Com tradições e crenças mantidas até hoje, eles se comunicam em sua língua nativa, mas algumas palavras que fazem parte do vocabulário da comunidade são desconfortavelmente reconhecíveis: helicóptero, espoleta, pólvora e tuberculose são alguns termos falados por eles em bom e claro português.

As palavras, aprendidas com os brancos (como eles se referem aos não-indígenas), refletem o inconfundível impacto da presença de garimpeiros ilegais em seu território e que está retratado no documentário “A Última Floresta”, dirigido por Luiz Bolognesi e único longa brasileiro selecionado na prestigiada mostra Panorama do Festival Internacional de Cinema de Berlim.

O filme narra a luta do líder yanomami Davi Kopenawa (que assina o roteiro ao lado de Bolognesi) para defender o seu povo da exploração ilegal de minerais. A descoberta de jazidas de ouro nas terras yanomami já deixou marcas profundas na comunidade. Entre 1986 e 1990, estima-se que 1.800 nativos (20% da população) morreram em decorrência de doenças e conflitos causados por 45 mil garimpeiros que se infiltraram no território.

Em 1993, garimpeiros invadiram uma aldeia e assassinaram 16 indígenas, entre idosos, mulheres e crianças. Conhecido como o Massacre de Haximu, foi o primeiro caso julgado pela Justiça brasileira no qual os réus foram condenados por genocídio. Foi depois dessa tragédia que, com a ajuda do Exército e de bases de fiscalização, o governo brasileiro conseguiu manter o garimpo ilegal fora das terras yanomami. O esforço, no entanto, durou só 25 anos.

Desde 2019, com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro, que prometeu abrir a Amazônia para exploração mineral em áreas indígenas (o PL 191/2020 está na Câmara para ser votado), mais de 20 mil garimpeiros voltaram a invadir o território yanomami, derrubando a floresta, envenenando os rios com mercúrio (usado no processo de separação do ouro dos demais sedimentos) e trazendo a covid-19 para as aldeias.

Os garimpeiros têm feito muito mal. Levam doenças, como malária e gripe, a poluição do rio e matam os nossos parentes. Agora, as autoridades e a sociedade vão perceber que isso não está bom.Davi Kopenawa em declaração ao UOL

Bolognesi espera que, através de “A Última Floresta” e com apoio internacional, a opinião pública se sensibilize e pressione o governo para fazer a desinclusão do garimpo no local. “A terra Yanomami é uma área demarcada por lei, aprovada pelo Congresso brasileiro, desde 1992. Retirar esses garimpeiros invasores não é um favor. Eles querem que o governo brasileiro cumpra a lei que os brancos mesmo fizeram”, diz o cineasta em entrevista por telefone ao UOL.

O garimpo ilegal no território vai além da destruição do povo Yanomami. “Além do mercúrio, que mata os peixes, os animais que vão beber água e contamina o povo indígena, eles destroem as florestas. Cientistas e economistas do mundo todo são unânimes em dizer que o regime de chuvas da América do Sul depende da umidade da Floresta Amazônica”, descreve Bolognesi.

O diretor ressalta a possibilidade de uma crise hídrica no país. “Já estamos vendo faltar água nas torneiras de São Paulo e do Rio. Falta chuva na plantação de soja. Falta água para hidratar o gado. Então até o PIB brasileiro, a economia dos fazendeiros, corre risco se a floresta for destruída”, ele aponta. “O Davi fala: ‘quando eu estou lutando para deixar a minha terra em pé, estou lutando pelo futuro das crianças brasileiras e, como a floresta está ligada ao aquecimento global, eu estou lutando pelos seres humanos do planeta’.”

Se não agirmos pressionando o Congresso, a crise de água no Brasil vai ser muito grave. Se não for por respeito ao povo Yanomami, então que seja pela inteligência de respeitar a própria vida. Nós vamos ficar sem água.Luiz Bolognesi, diretor

 

Um povo bonito

Apesar de o tema do garimpo ilegal permear o dia a dia dos nativos, o que se vê em “A Última Floresta” vai muito além: está ali a vida em comunidade de um povo resistente e com uma história milenar de crenças, costumes e tradições. O documentário ainda assume uma perspectiva fantasiosa ao recontar a origem dos Yanomami através de encenações feitas pelos próprios indígenas sobre seus mitos e folclores.

“Eu, como líder do meu povo, pensei que [o filme] seria uma oportunidade de mostrar a beleza do povo Yanomami”, diz Kopenawa. “O povo da cidade não conhece a realidade Yanomami. Nem o governo nos reconhece ainda. Nenhum governo veio aqui, nunca conversaram, nunca conheceram nossas mulheres, nossas crianças, nossa língua. A luta é maior do que mostrar as nossas imagens. Isso vai ajudar a nos defender.”

Nosso povo é muito bonito. É necessário mostrar a beleza do Yanomami para que os brancos olhem a filmagem e pensem se é bonito ou feio [risos]. Eu acho muito bonito. Fico emocionado.Davi Kopenawa

O documentário de 1h15 de duração apresenta um vislumbre do estilo de vida minimalista e dos costumes do povo. Os Yanomami vivem em grandes casas comunitárias circulares, com uma área central utilizada para atividades como rituais, festas e jogos. Como a maioria das tribos, as tarefas são divididas entre homens e mulheres. Eles são responsáveis pela caça; elas, por cozinhar e pela manutenção do fogo. Todos eles têm alguma função na criação dos filhos e em realizar trabalhos manuais.

Bolognesi ressalta o conhecimento científico de plantas medicinais e de sustentabilidade do povo Yanomami. “Eles têm uma capacidade de viver bem, com abundância de proteína e carboidrato, com qualidade de vida, e sem destruir os biomas. Nós destruímos tudo em 500 anos e eles viveram nesse território 4.000 anos antes de a gente chegar, em um regime de caça, coleta, pesca e plantio, sem destruir nada. Se alguém entende de sustentabilidade, é essa gente.”

O filme de Bolognesi abre os olhos para as consequências devastadoras da industrialização e da urbanização para os indígenas e nos estimula a repensar nosso modo de vida baseado na exploração da natureza. “Está na hora de a gente aprender com os povos nativos, resgatar a potência do conhecimento, da sabedoria, da ciência. É hora de a gente escutar e aprender mais com eles.”

“A Última Floresta” passará este primeiro semestre de 2021 marcando presença em festivais internacionais. O filme chegará em agosto a um serviço de streaming ainda não revelado. Antes disso, “Ex-Pajé”, documentário que Luiz Bolognesi dirigiu em 2018 denunciando manobras da igreja evangélica para desacreditar os xamãs no Brasil, entrará no catálogo da Netflix nas próximas semanas.

 

 

fonte: Conteúdo ms

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