Não acredito que o Tribunal Penal Internacional vá investigar Bolsonaro’, diz ex-juíza da corte
Os precedentes do Tribunal Penal Internacional (TPI), que tem sede em Haia, na Holanda, levam a crer que a corte não deve dar andamento às denúncias que acusam o presidente Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade. A avaliação é da brasileira Sylvia Steiner, que atuou como juíza do TPI de 2003 e 2016, além de ter sido desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3).
Ao Estadão, Sylvia disse que as medidas recentes tomadas pelo governo em relação às comunidades indígenas – somadas à denúncia feita ano passado pela Comissão Arns – podem, em tese, dar ensejo ao começo de uma investigação, mas que é improvável que ocorra.
“Até agora, o tribunal tem dado prioridade para casos que envolvem conflito armado, ataques contra a população civil”, afirmou Sylvia em entrevista antes de nova denúncia ser enviada neste domingo, 26, contra Bolsonaro. “Acho muito difícil que um caso que envolva a questão de políticas públicas possa ser levado adiante.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes disse que o Exército se associou a um “genocídio” durante a pandemia. Como avalia a fala?
Me parece que hoje em dia se usa muito (a palavra) “genocídio” como uma expressão mais genérica, e não como um nome dado a uma conduta específica prevista como crime internacional. Não acredito que o ministro Gilmar tenha falado em “genocídio” como a figura jurídica do genocídio. O genocídio é uma conduta que implica um dolo específico, que é eliminar determinado grupo.
Gilmar teria alertado o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) e Bolsonaro da possibilidade de o tratamento a indígenas ir parar no TPI. Acha possível?
Já existe uma denúncia contra Bolsonaro no TPI em relação às comunidades indígenas, mas pelas queimadas e desmatamento na região onde essas comunidades vivem. Ainda está na fase de triagem. Agora, em razão das últimas medidas tomadas pelo governo – com veto ao projeto de lei que tirou a proteção especial que merecem as comunidades indígenas –, se ingressarem com uma nova denúncia no tribunal que se some à anterior, por conta da destruição do ambiente natural, aí, em tese, você pode dar ensejo, sim, ao começo de uma investigação. Mas muito em tese, eu particularmente não acredito que isso ocorra, tendo em vista o tipo de situações que têm sido selecionadas pela procuradoria para dar início a investigações.
Que situação costuma ser selecionada?
Situações que envolvem conflito armado e ataques violentos contra a população civil. A procuradoria tem que ser seletiva, ela não pode dar início à investigação sobre toda denúncia que recebe. Nós sabemos que está em fase de exame preliminar a situação da Venezuela: detenções, execuções sumárias, tortura, assassinato, estupros coletivos. Esse é o tipo de crime que normalmente a procuradoria tem entendido como sendo de maior gravidade.
E, fora a questão indígena, a postura do Brasil frente à covid-19 pode ser abordada pelo TPI?
Recentemente ingressaram denúncias em relação ao combate à covid-19, alegando crimes contra a humanidade. Pessoalmente, não vejo que existem aqui os chamados elementos contextuais, o ataque generalizado e sistemático contra uma população civil.
Quais povos vivem isso?
A procuradoria solta, todo ano no começo de dezembro, um relatório sobre a situação desses exames preliminares. Todas as situações que estão atualmente em exame preliminar envolvem atos de violência. Não há nenhum exame preliminar sobre eventuais políticas que violem os direitos humanos, até porque isso não é competência do tribunal. Temos a situação da Nigéria por causa do Boko Haram, da Palestina, das Filipinas, da Ucrânia, da Venezuela. Nesse aspecto, os precedentes demonstram que, até agora, o tribunal tem dado prioridade para esses casos que envolvem conflito armado e ataques violentos contra a população civil. Na esteira desses precedentes, acho muito difícil que um caso que envolva a questão de políticas públicas possa ser levado adiante.
Como é o rito de um processo no TPI e quanto tempo dura?
Essa fase em que estão essas (novas) denúncias é ainda a fase de triagem. A procuradoria rejeita liminarmente todas as denúncias que são manifestamente fora da competência do tribunal. Aquelas que, à primeira vista, seriam da competência do tribunal, a procuradoria inicia o exame preliminar, que pode demorar um ou dois anos. Vai examinar se foram cometidos crimes, a gravidade das condutas, se é do interesse da Justiça a abertura de uma investigação. Temos a situação da Colômbia, que está há oito ou nove anos em estado de exame preliminar e a procuradoria está apenas monitorando. Se a procuradoria entender que há razões para começar uma investigação formal, ela pede autorização a uma câmara de três juízes para iniciar essa apuração. Não é um processo rápido e tem que ser muito cuidadoso, exatamente para evitar qualquer tipo de iniciativa politicamente motivada por parte do tribunal.
O vice-presidente Hamilton Mourão está no Comitê Orientador do Fundo Amazônia e Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde. Como a comunidade internacional vê a atuação dos generais contra a pandemia e o desmatamento?
Eu tenho acompanhado o que sai na imprensa e são notícias que colocam o nosso país em uma situação muito desagradável. No último relatório da Michelle Bachelet ao Conselho de Direitos Humanos na ONU, que trata especificamente da questão da pandemia, ela fez questão de frisar que os países com as piores condições de enfrentamento são Belarus, Nicarágua, Burundi, Tanzânia, Brasil e Estados Unidos. Quer dizer, olha em que companhia nós estamos. Coloca o País em pé de igualdade com países menos desenvolvidos. E com os EUA, que tem merecido as mesmas críticas que nós. Em relação ao desmatamento, nós já sofremos censuras de diversos órgãos internacionais e agora estamos correndo o risco de sofrer sanções econômicas e comerciais. Então o prejuízo para o País é inegável.