Educação indígena: sabedoria que ‘afunda lanchas’ e preserva culturas no Xingu

Em 2021, o Parque Nacional do Xingu , localizado no Mato Grosso, completa 60 anos. Criado por decreto em 1961 pelo então presidente Jânio Quadros, a região, chamada por quem ali habita de ‘território’ e não de parque, abriga diversos grupos étnicos e tem vital importância na preservação cultural de toda a comunidade indígena , garantindo a sobrevivência da rica história destes povos.

Porém, para que este conhecimento sobreviva, é preciso que seja compartilhado. A cada nova geração, os jovens têm menos interesse em aprender sobre seu povo e sonha com a vida fora das aldeias . Para combater isso, diversos setores se reuniram para criar salas de aula nas aldeias com o objetivo de disseminar a chamada educação indígena, fortalecendo a troca de experiências entre as etnias e garantindo assim a sobrevivência cultural.

Um bom exemplo dessa união atende por Enisandra Aparecida de Oliveira, pedagoga com quase 30 anos de experiência na área educacional e que passou 12 anos dedicada à criação destes locais de aprendizado dentro das comunidades. Moradora da pequena cidade de Feliz Natal , no Mato Grosso, ela relembra os percalços ao longo do “desbravamento” da educação, que passam não só pelas dificuldades tecnológicas e financeiras, mas também linguísticas.

“Fui convidada para trabalhar como coordenadora municipal em 2008. Participei de todo projeto escolar , fizemos todo o mapeamento ‘in loco’. São 175km de chão para visitar algumas das aldeias. O resto, é 8h, 10h de barco para visitar as aldeias onde estão as escolas. Nesta construção, a gente sempre perguntava para os nativos: ‘o que vocês esperam de uma escola na aldeia?’. Uma das primeiras coisas que todos diziam era o respeito à cultura indígena”, revela ela, em entrevista ao iG.

A professora lembra que foram meses de discussões, acertos e melhorias até que o conselho da comunidade indigena aprovasse o projeto e ele “saísse do papel”. A partir daí, foram criados o estatuto, o PPP (Projeto Político-Pedagógico) e as cinco escolas dentro das aldeias, cada uma com sua especificidade, garantindo assim que todos os troncos linguísticos fossem cobertos e respeitados.

“Nestas cinco escolas, temos três troncos linguísticos : a língua Kaiabi, a língua kamaiurá e a língua aruak, que é da aldeia aruak, mas o tronco linguístico é o wuara. Todos são muito específicos e necessitam de professores com algum conhecimento. Temos colegas que são formados com a pedagogia intercultural, específica para povos indígenas do estado de Mato Grosso. Então, já existe uma bagagem de graduação e pós-graduação bem acentuada”, afirma Enisandra, que foi promovida ao cargo de diretora das escolas indígenas em 2017.

Se por um lado foi possível tirar o projeto do papel, a dificuldade de tirar o papel das mãos dos alunos é um pouco maior. Como as aldeias ficam distantes da cidade de Feliz Natal e dos outros municípios no entorno, existe a dificuldade da falta de energia elétrica, o que impossibilita o uso de tecnologias, mantém o aprendizado nos livros e apostilas e força os professores – que são todos indígenas, das próprias comunidades – a se esforçarem ainda mais.

“Às vezes, há a instalação de internet em algumas aldeias. Mas o problema é anterior: não há energia. As que possuem eletricidade , por sua vez, sofrem com a má qualidade da conexão devido à falta de cabeamento e as longas distâncias. Além disso, infelizmente ainda não temos todos os livros didáticos adequados às realidades indígenas por conta dos muitos troncos linguísticos. Então nós usamos alguns materiais integrados, com mais projetos interdisciplinares, o que facilita o aprendizado e o acesso”, afirma.

Tal facilidade também se dá na movimentação destes recursos, uma vez que tudo precisa ser levado de barco um lancha por longos trechos até as aldeias: livros , carteiras, cadeiras, armários e todo o restante da estrutura escolas. Assim, quanto menor e mais leve for o fardo, mais fácil será a locomoção. Inclusive, Enisandra relembra um episódio em que uma das lanchas acabou naufragando ao realizar o trajeto após bater em um tronco de árvore: “sempre brinco que nunca vi o conhecimento pesar tanto”.

Além dos recursos didáticos oferecidos por estas apostilas , a educação indígena também conta com a ajuda de um programa nacinal que envia diversos livros de povos que ajudaram a reescrever as histórias para que elas não se perdessem: “a Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso) também resgatou algumas histórias e colocou em livros. Temos integrantes dos Kaiabi, que são protagonistas neste processo, que escreveram esses materiais ricosde conhecimento cultural, que nos dá a chance de aprofundar a história e deixar isso como um legado para eles”.

E engana-se quem pensa que os problemas envolvendo internet e eletricidade estão restritos aos locais mais ermos. Morando no municípicio matogrossense, a professora, que é mestranda em Tecnologias Emergentes em Educação pela MUST University (EUA), lembra alguns percalços enfrentados durante o curso: “meu maior medo era que a internet me atrapalhasse, porque ela oscila muito e eu temia que pudesse cair no meio da realização de uma prova, era minha grande preocupação. Então, eu procurava sempre deixar para fazer as coisas no sábado, que são dias com menos pessoas usando”.

Enisandra lembra que o início da pandemia acabou se tornando um dificultador na relação com os indígenas. Visando o menor contato possível, em especial após a confirmação de casos e óbitos nas aldeias , as equipes de educação optaram por utillizar as mesmas apostilas que eram distribuídas no centro urbano e na área rural da cidade, o que facilitou o transporte, mas gerou uma nova etapa no processo de aprendizagem: a tradução do conteúdo.

“Tivemos que tomar algumas medidas mais rígidas por conta do risco de contaminação . Eles deixaram de vir até a cidade, nós passamos a levar tudo até a barranca, esperávamos por eles lá, onde tudo era recolhido. Passamos a oferecer materiais de higiene e limpeza também. Foi um trabalho que tivemos que reaprender a como cuidar de nós e deles”, diz a professora, que neste ano de 2021 se afastou do ensino regular para para assumir o comando da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Feliz Natal.

Apesar da ‘distância, Enisandra não deixa de se preocupar com o aprendizado de ninguém, seja de sua própria família ou de colegas e conhecido. Incentivada por ela, a filha está realizando um trabalho de conclusão de curso exatamente sobre educação especial, para que “conheça o trabalho que a mãe faz” e dê valor às conquistas por meio do exemplo dela.

” Eu digo que sou uma eterna estudante, tenho amor pela educação porque ela me deu tudo o que eu poderia querer. Realizei o sonho do mestrado e vejo que não quero parar por aqui. Quero que outros tenham as mesmas oportunidades que eu tenho, que também realizem seus sonhos. Uma comunidade se faz de famílias e, assim como a comunidade indígena tem desse cuidado, acho que também temos que levar nossa educação a sério porque é assim que nossos filhos também irão aprender”, conclui.

 

Fonte: Último Segundo – iG

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